Não sabiam? O Festival Varilux de Cinema Francês começou ontem e logo exibindo o filme O LIVRO DA DISCÓRDIA, direção de Baya Kasmi. Eu amo filmes baseados em ação verbal! Tem tudo a ver comigo, com a matéria onde mergulhei a vida inteira – a comunicação humana – e assistir a leveza de atores que “equilibram mil palavras por minuto” com essa maestria é uma delícia!
Com um roteiro crítico à influência do fator “família” na nossa vida, O LIVRO DA DISCÓRDIA mostra um passo a passo de segredos tortuosos que não têm real motivo pra existirem – ninguém é bandido, mafioso, miliciano ou traficante – mas existem. Assim, as discussões mais disparatadas acontecem, feitas pelos irmãos que se veem nas personagens, tanto quanto pelo irmão que não foi citado no livro, o que é leve, bem humorado e, à medida em que começamos a nos relacionar com a nossa própria história de brigas entre irmãos, fica hilariante.
O traço suave aponta para o amor não nomeado ao redor de cada uma das mentiras, visível pelo respeito que todos têm pelos pais – outra coisa que acaricia nossas “saudades essenciais”, já que a pandemia e a vida nos retiraram muitas pessoas.
Nessa construção, o trabalho de Ramzy Bedia é soberbo e consistente, mas Melha Bedia dá um show de interpretação, num ritmo cênico verdadeiramente alucinante, incrível. Ver os dois juntos – e me surpreendeu saber que são parentes na vida real – foi impagável.
Mas este foi apenas o primeiro dia de um festival que marca tantos traços culturais diferentes, construções de personagens, interpretações, vidas – que conseguimos enxergar melhor porque não são as nossas – numa aventura criativa que dura até o dia 22 de novembro. A Aliança Francesa de Salvador, que nos presenteia sempre com filmes cada vez mais interessantes, ofereceu também um coquetel cheio de “belisquetes deliciosos” que comemoraram as nossas vacinas, a nossa saúde e a nossa alegria pela possibilidade de convívio – outra alegria extrema. Fernando Marinho, lá estava - o que é outro presente. Responsável pela Presidência do Conselho da Aliança, tê-lo ao redor de nós na noite de abertura é a certeza da gentileza de um amigo querido.
Os filmes serão inúmeros e o tempo sempre pequeno para vermos todos, o que causa aquele “frisson” de qual escolher, horário, cinemas - portanto se programem. O Circuito de Cinema – Saladearte, juntamente com o Cine Glauber Rocha já têm filmes e sessões online em suas páginas.
De resto, curtam. Ver um bom roteiro e a construção de personagens sólidos se concretizarem num filme que te toca é uma forma de espetáculo introspectiva, emocional e emocionante e isso vai acontecer de novo no Festival Varilux de Cinema, acreditem.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Primeiro, é sempre um encanto poder usufruir do Festival Varilux de cinema Francês. Excelentes filmes, sempre. É um Festival anual, soberbo. Desde 2020 que nada é como era, os ritmos vão se encontrando e se construindo de novo – para alguns talvez mais rápido, para outros talvez mais lento. Este ano, tivemos a honra de ser convidadas para a estreia. E fomos. Que bom que foi. Encontrar velhos amigos, nos encontrarmos de novo nas coisas que amamos tanto. O Festival continua impecável. Bem organizado – Fernando Marinho, Presidente do Conselho Diretor da Aliança Francesa, dá show de organização, competência, gentileza e acolhimento.
O filme escolhido para a estreia – “O Livro da Discórdia”/ “Youssef Salem a du succès” (2022) – é excelente. Atores talentosos, uma direção fluída, com planos sabiamente ajustados ao roteiro – relações familiares em famílias grandes, com vínculos emocionais fortemente interdependentes, com discórdia, com confrontos acalorados, pedem planos próximos, até poluídos. O personagem principal, Youssef, é um excelente ator, com uma voz encantadora e um olhar muito “falador”. É desesperante assistir à sua vida já que ele busca por todos os meios a aprovação dos pais e dos irmãos – principalmente do pai. Se esconde, esconde quem é e como vive, esconde o medo que tem de não ser capaz de “ser alguém”, de acordo com as regras do pai. Passa a vida a correr e a viajar para visitar os pais e a família. No momento em que se entrega ao que sente, ao que vê à sua volta, consegue escrever um livro que vai abrir muitos caminhos – alguns difíceis. Se abre espaço para o confronto com a realidade de cada um, com o respeito pelas religiões, culturas. Muitas vezes aconselhamos os outros a não levarem a vida tão a sério. Mas outras vezes, ao nos dizerem ou nos fazerem algo que nos magoa, sem esperarmos, reagimos, não toleramos. Povos e pessoas que vivem fora do seu habitat natural ou país, se sentem toda a vida desajustados, sem chão. E isso os deixa mais frágeis e com menos capacidade de tolerância. Youssef tenta contrariar isso, tenta que o cordão umbilical “apertado” que possui com a família, se solte um pouco e o deixe respirar, viver, ser. Tenta sorrir e ironizar com a realidade, quem sabe para diluir a dor. Me vi no filme, vi muitas pessoas. No lugar dele, ou de outras pessoas da família. O amor que devia libertar, ajudar a voar, tantas vezes sufoca e bloqueia.
Tente não perder o filme. É sensacional, um espelho para nos vermos, vermos a família, vermos as verdades e mentiras que tantas vezes aceitamos engolir.
Sobre a trilha sonora, sou suspeita porque amo de paixão música árabe. A relação dele com sua amiga de infância é um encanto. Vou parar porque a vontade é de contar tudo. Veja o filme. Venha ao Festival Varilux de Cinema Francês. No Cine Glauber Rocha e no Circuito de Cinema – Saladearte.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Um romancista magrebino que luta com os prós e contras do sucesso da noite para o dia depois de publicar um livro sobre sua família.
Direção: Baya Kasmi
Elenco: Ramzy Bedia, Noémie Lvovsky, Abbes Zahmani.
Trailer e informações: