
O filme fala de tempo e tempo é uma coisa difícil de concretizar porque é um conceito humano introjetado. Então a maior dificuldade que eu tive foi a de ter que arcar com a sensação de carregar o peso do tempo – e o diretor foi extremamente habilidoso em lidar com o conceito, dimensiona-lo dentro da história do universo, do nosso planeta e de um fato histórico – os assassinatos cometidos pela ditadura de Pinochet, no Chile.
As imagens, a fotografia do filme é qualquer coisa indiscutivelmente bela, embora totalmente abstratas porque o filme começa com a nossa observação do universo – é como entrar em quarta no cinema e o diretor te reduzir à primeira. Poucas trilhas e pouco tempo de uso de trilha, ou seja, o filme começa com a ideia de nós olhando e sentindo o vazio silencioso do mundo, chegados do nosso mundo, Brasil, Bahia, Salvador, dificuldade pra estacionar no Corredor da Vitória.
Que história. Na verdade, a visão do mundo e a visão da nossa própria evolução, apenas aponta para o desnível evolutivo ao redor de toda a ação que resulte na privação da liberdade humana. E ditadura – em qualquer ideologia – é apenas isso - a privação da liberdade humana. E o Chile tinha campo de concentração durante a ditatura. Campo de concentração(!).
O que faz uma pessoa da família “garimpar poeira de ossos humanos de parentes” nos 1000 km Deserto do Atacama, durante 30 anos? O que a faz testemunhar que achou um pé, a parte esquerda da mandíbula, fragmentos da testa, etc, etc? Somos poeira cósmica num lugar que é tão seco que os corpos demoram a se decompor, o que é bom pra astronomia, bom pra antropologia, mas é uma denúncia permanente de tortura e assassinato, se o tempo for contado através da história recente do Chile.
E a nossa “poeira” histórica? E Emilio Garrastazu Médici, o rei dos reis? O sociopata-mor do Brasil? E os nossos lutos, que foram escondidos, ocultados, tão “desaparecidos” quanto os culpados pelas atrocidades que sofreram, que sofremos? Sim, amigos porque ninguém é culpado de nada nesse Brasil que encobre tudo. Uma anistia suja, que encobre os culpados e suas culpas. Que ensinou a encobrir.
Nostalgia da Luz é uma história atroz, numa linguagem onde você vê a divindade a nos mostrar que acabamos todos como “poeiras vagando no tempo” – os bons, os maus, os animais, os planetas, as estrelas – pós à mostra, no universo, corpos secos, mumificados à mostra, torturados, assassinados. À mostra, no universo.
Não vale comer pizza depois, nem nada muito socializante. Podemos ser terríveis. Mas vamos virar pó e se houver o que dizem que há, muitos terão muito a esclarecer. E claro, sabendo que o tempo presente é tão efêmero, que ao tomarmos consciência de um segundo ele inexoravelmente já passou, já é passado. Tic tac, tic tac... Time is ticking...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um documentário impressionante. Lento, intenso, como a dor. Não sabia que existia um lugar no mundo onde não existe nenhum grau de umidade/humidade – o imenso Deserto de Atacama. Não sabia que era um lugar importante de observações para astrônomos e cientistas. E, principalmente, não fazia a mínima ideia que os presos políticos “desaparecidos” na ditadura no Chile, foram “escondidos” neste deserto. Terrível. Clarice Lispector já dizia que “a realidade é inacreditável”. Inacreditável...
Tenho vergonha de o dizer, mas vou dizer. Não sabia que a ditadura do Chile tinha sido capaz de fazer coisas tão cruéis. Campos de concentração também? Curiosamente os campos de concentração eram as instalações construídas para os mineiros, com a diferença de os mineiros não terem arame farpado em volta das casas. Mineiros que viviam e trabalhavam como escravos. Num lugar inóspito. E esse lugar virar um lugar de tortura e chacina de presos políticos. Que são espalhados e escondidos de forma inacreditável pelo deserto difícil e perigoso de Atacama. As famílias ainda hoje vão com frequência procurar restos dos corpos...nem consigo imaginar que dor é essa.
O investimento que se faz em descobrir os mistérios do espaço, do universo, de onde viemos choca com o que não se investe em ajudar estas famílias a descobrir os seus desaparecidos, a apaziguar as suas perdas. E a responsabilizar os que cometeram estas atrocidades. Somos cheios de contradições e de silêncios. Imagens apaixonantes do céu do Chile em contraste com a dor da procura no meio da areia, de restos das pessoas que se ama. Inacreditável... E milhões para descobrir de onde viemos...pelo que fazemos aqui na terra não devemos ter vindo de um grande lugar não. Devíamos ter vergonha e coragem de nos revermos por inteiro.
“Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente, os que não têm memória não vivem em nenhuma parte.” Esta frase do filme é fortíssima.
Não percam este documentário. É difícil mas muito importante de ser visto. Principalmente para nós que nascemos na Europa porque precisamos saber um pouco mais sobre os horrores das ditaduras do Chile e do Brasil. Entendemos melhor muitas coisas sobre estes países depois disso. Depois de sair de um documentário destes é preciso engolir e seguir, porque abana...
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt1556190/
Circuito Saladearte