Em primeiro lugar, o momento. A estreia de MARIGHELLA poderia ter acontecido desde a volta da democracia no Brasil, na década de 1980. Mas afinal, foi exatamente no momento onde ela se viu fustigada que o filme vem como mais uma barricada contra palavras repetidas e repetidas e repetidas. Nesse sentido, a bandeira do Brasil tem respingos vermelhos que nada têm de comunistas – são o nosso sangue, borrifado aqui, ali e também ao redor das mãos que catam lixo num caminhão ou ossos e pelancas em outros; que são exploradas quando o preço do pé de galinha e dos ovos é inflacionado pela procura. Nossos olhos sangram de chorar pela mesma busca de sempre.
O que mudou no País? O que mudou em nós?
Pelo vocabulário velho, repisado e repetido até hoje, parece que o mundo inteiro evoluiu, “virou comunista” e apontou uma vacina como resposta em prol da vida, quando “Deus, a Pátria e a Família” queriam consumir quilos de comprimidos que deveriam ter sido proibidos há muito tempo para o Covid – não o foram, porque a repetição da ignorância sempre é cansativa – mas costuma dar lucro. Melhor seria se todos “pulassem da Terra plana”. O caos ou big bang haveriam de gostar de receber o "aleatório e pífio" para aulas particulares.
Nesse sentido, todos os problemas que a Ancine criou conduziram MARIGHELLA a estrear no momento mais perfeito. Um momento onde vemos o "caos pífio" sair do Brasil para provar rodelas de salame, conversar com garçons e ser colocado à parte da discussão, do debate econômico, da conversa fluída e até do cafezinho – que o nosso "impávido colosso oco" trocou por refrigerante americano, sem perceber (percepção?) que café faz parte da imagem do Brasil, no mundo.
Com uma fotografia maravilhosa, MARIGHELLA aglutina pontos e condensa momentos da história – a mesma história – que é repetida, ano após ano, eleição após eleição, década após década; antes da busca por comunistas, a política precisa parar de fingir que não vê os pobres e a ignorância porque este é o inimigo a se combater.
Elenco gigante, com grandes movimentações e tomadas incríveis, que nos colocaram dentro da ação - passando apertado e tendo que “abaixar” para podermos chegar ao vagão com as armas, no trem. Rever Ana Paula Bouzas e Harildo Deda no cinema... bem, aí não tem preço.
Há duas menções importantes: Hewald Hackler, diretor de teatro, sempre diz que o idioma do ator é estranho e extra-ordinário - ou fora do que é ordinário, comum, falado por todos. Nesse sentido, no filme, há uma questão que caminha entre articulação rápida demais e muitas vezes gritada dos grandes atores presentes, que geraram problemas de dicção, que por sua vez roubaram da fala o extraordinário dom da comunicação em algumas cenas. Da mesma forma, privar o público da possibilidade de imaginar momentos da história, apoiando algumas ações na possibilidade que a verossimilhança dá ao contexto cênico foi uma perda que senti, também. Ou seja: a ação verbal também estimula a imaginação. Digo isso porque imaginar atrocidades talvez seja mais profundo do que vê-las, à medida que somos infinitamente mais cruéis do que o cinema pode criar nas telas, infelizmente. Muitas vezes o convencimento nasce da vergonha do que cada pessoa vê, dentro de si.
O grande momento, porém, foi o do Hino Nacional – explosivo, indescritível e descontrolado – e isso valeu por qualquer outro momento. A tal mágica da verossimilhança se fez e foi incrível: independentemente de qualquer ideologia, estamos vendo um País afundar numa ignorância nociva, monstruosa, cega, que mata, que tenta calar, nos encurralar e que cada novo movimento dos políticos que têm a liderança tenta nos paralisar ainda mais como civis, como cidadãos e como brasileiros. Valeu ouro sentir que ainda somos capazes. Que podemos.
Precisa ser visto, comparado ao episódio MARIGHELLA, da série Investigadores da História, lido em muitos livros do Tortura Nunca Mais, estudado e debatido nas escolas - e se não puder ser no tempo do agora, pode começar a ser nas casas – e se não for nas casas, nas ruas e na vida. MARIGHELLA foi um herói como ZUMBI e pelo mesmo motivo tentam "desaparecê-los" da história. Ambos, com uns 300 anos de diferença, nos mostraram que a miséria e a falta de liberdade são inadmissíveis. E que nós temos que continuar. Porque a guerra ainda não acabou.
Parabéns a todos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Uma história de vida muito importante para Salvador, para a Bahia, para o Brasil. Um herói da luta contra a ditadura. Marighella, seu nome. Polêmico, para alguns, por ter seguido o espinhoso caminho da luta armada. Intolerável para outros, que até dificultaram os apoios, as gravações, a estreia, a divulgação do filme.
O primeiro filme, que temos conhecimento, que foi alvo de haters no site IMDB (Internet Movie DataBase), em final de outubro de 2021. Incómodo é o que parece, no mínimo. E não nos parece estranho tudo isto, estando a viver o que o Brasil está vivendo atualmente. Filme e timing de divulgação, muito importante.
Para os brasileiros talvez seja um filme que os leve a comparações com o que sabem da sua trajetória de vida. Tantos documentários, textos, perícias, informações, podem levar o nosso cérebro a tentar analisar se aquele tiroteio foi assim mesmo, se ele morreu mesmo virado para aquele lado, etc. Questões de brasileiros atentos, que sabem, pensam e refletem muito sobre Marighella e sobre o seu sofrido e massacrado país e, percebem como tudo anda há “um tempo” a resvalar de novo. É um país diferente, mais estruturado, mas ainda não o suficiente para anular destruições súbitas, como atualmente. Vive nos nossos corações a esperança de que o filme lembre os danos passados, alerte para o que sucede atualmente, permita a sobrevivência e o renascer do país numa forma mais estável, justa e equitativa.
É uma alegria ver sensacionais atrizes de teatro de Salvador, na tela, como Ana Paula Bouzas. Seu Jorge, homem de várias artes, num papel muito intenso. Bruno Gagliasso, um baita ator, diria que não necessitava de tanta “careta”, nem poses de “mau” com a barriga para fora e a cabeça levantada, para desempenhar bem o papel. Muito ator e muita atriz com talento. Amei o elenco. Amei a cor do filme. Amei o figurino, cenário. Saudades de candeeiros, isqueiros, carros, volantes dos carros.
É um filme com muita ação. Decisão do diretor mais do que respeitada, mas teria amado ver, também, um pouco mais de emoção, do lado humano de alguns personagens. “Não custa” pedir.
Tive dificuldade em entender algumas falas e fui-me socorrendo das legendas em inglês, mas eu diria que o filme, em Portugal, poderia passar com legenda. Daria uma enorme ajuda. Fica o pedido.
É importante que em Portugal vejam o filme. Precisamos entender melhor como a ditadura no Brasil foi terrível. Talvez também entender de onde vem o que se vive hoje. Este filme pode ser um começo para os menos atentos.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Um filme biográfico sobre Carlos Marighella, escritor marxista brasileiro, político e guerrilheiro que viveu no século 20 e foi morto pela ditadura militar brasileira em 1969.
Diretor: Wagner Moura
Elenco: Seu Jorge, Ana Paula Bouzas, Bella Camero, Herson Capri,...
Trailer e informações: