Quando nasce alguém, normalmente, o mundo ganha novas duas mãos. São totalmente essenciais e de tão essenciais, são comuns. Nossa relação mais íntima com o mundo se faz através delas e, nesses estranhos tempos onde nossas mãos são vetores de propagação de vírus, temos dificuldades em olhá-las procurando nelas o mal, quando nos acostumamos a ver a vida passar através de nossos dedos.
E no caso de um pianista? E quando uma pessoa passa a ser compreendida como intérprete e sua única e melhor forma de nos mostrar sentimentos nasce da relação entre suas mãos e as teclas de um piano? Neste documento da RTP – canal de Portugal – enquanto a jornalista via e apontava as mãos de Maria João Pires como mãos de um gênio da música – e é – Maria João Pires as mostra como mãos – insuperavelmente necessárias apenas porque precisamos delas para tudo o que é tangível na vida.
Sua diferença de percepção do mundo apenas se inicia aí. Enquanto vemos artistas “economizando” expor partes de si mesmos, fazendo seguro de partes específicas do corpo, Maria João Pires dá aula de como o que somos não pode nos roubar vida. Assim, uma das intérpretes históricas de Chopin aparece sovando massa de pão, mostrando sua horta, pegando, costurando, puxando, fazendo – vivendo – mostrando que da vida, nada além da vida lhe interessa. E por isso, por ser parte da vida, o piano e o seu enorme talento lhe cabem não como a maior parte dos artistas vê sua arte, mas como parte, apenas parte de um todo muito maior que é ela mesma. E também cabe uma escola, a Casa de Belgais, pela qual já brigou com o Governo de Portugal e enfrentou pressões que não foram suficientes para fazê-la desistir. Ela, que tem “mãozinhas” tão pequenas para o piano e que também ignorou a regra de que pianistas têm grandes dedos, apenas foi lá e tocou - e toca - piano.
Há “diferentes” pelo mundo e o Bug não se cansa de procurar por eles e mostrá-los para que ninguém desista de sê-lo, mesmo sabendo que será sempre mais difícil viver sendo um dos diferentes. O documentário vai ficando melhor à medida que se entrega ao fato de que é impossível “dominar” um diferente e que graças a eles o mundo tem a chance de evoluir de maneiras melhores.
Com grandes músicas, grandes autores e uma grande intérprete para eles, MÃOS QUE MOVEM O MUNDO poderia “auto expor a genialidade artística de alguém”. Ao negar falar de si dessa maneira, Maria João Pires faz com que a vejamos como uma sensível, como uma diferente, como uma artista que desequilibra o cenário musical quando toca, mas que também nos estimula quando escolhe viver num trailer, acompanhando a reforma da casa que para além de sua, virou a Casa de Belgais e que educa crianças a partir da música. Sim. Uma casa que virou escola. Diferente. Assistir, vale cada segundo.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
O orgulho de ser portuguesa inclui sem dúvida o fato de uma das melhores pianistas do mundo – Maria João Pires – ser portuguesa. Como inclui o orgulho na cultura, nos costumes, na linguagem, no pensamento. Quando viajamos pelo mundo não em turismo mas em trabalho acabamos sempre por dar mais valor ao que somos e de onde viemos. Isso se torna mais forte ainda quando vivemos, nem que seja por pouco tempo, noutro ou noutros países. Apesar de tudo isso, nem sempre é possível aceitar tudo o que se faz e que é “regra”. No nosso país, no país onde vivemos, na nossa família, em nós, não existe só o que se deseja e espera. Ver em Maria João Pires essa tristeza, insatisfação de não ser respeitada, entendida e apoiada pelos seus é duro. Duro porque não parece certo e muito mais duro porque sempre achamos que os que conseguem maior projeção social alcançam a luz e as portas abertas. Pois Maria João Pires nos vem dizer que isso não é assim. Vem confirmar as suspeitas de que existem concessões, obediências, conveniências, tradições, favores necessários para atravessar as “últimas” portas do “éden”. Em qualquer lugar do mundo. Sem isso, você, por muito talento que tenha, não passará da porta final. E falamos de uma das pianistas mais famosas do mundo. De uma forma diferente, aconteceu com Saramago. Fernando Pessoa também teria muito a dizer, quem sabe Luís de Camões também... E quantos mais? Ao falar de Portugal falo dos seres humanos que ocupam periodicamente lugares de chefia em instituições e liderança governamental e política e que, nesses lugares, devem prezar pelos seus pares sem olhar a cores políticas ou formas de vida. Os lugares que ocupam determinam a vida de muitas pessoas e seria nobre cumprir esse lugar e função como foi designado. Servir o país e as pessoas que precisam e esperam de você essa ajuda ou apoio. Estar nesses lugares não é para “aproveitar”, muito menos desrespeitar ou explorar.
Maria João Pires sempre foi diferente. Charmosamente diferente. Há muitos anos que diz que adora acordar e ir apanhar os ovos, tratar das galinhas, guiar o trator, fazer o pão. E logo os especialistas interrogam: “ mas e as suas mãos?”. E o ser humano dentro de Maria João responde: “E a vida? Vou deixar de viver e ser livre e fazer o que devo e amo fazer, por uma necessidade de proteger as mãos? A vida não é só tocar piano.” Esse lado humano e da vida do dia a dia é sem dúvida raro no seu mundo. O mundo dos talentosos de alguma forma tenta formatar o ser humano para só se preocupar com a função do talento. É pianista famosa? Só deve tocar piano. Mas Maria João Pires chama a nossa atenção para a vida e viver não é só tocar piano, trabalhar formalmente. Viver, como dizemos regularmente é também fazer a nossa comida, cuidar dos nossos alimentos, etc.
Uma entrevista deliciosa, que mostra a sua casa de Belgais - lugar encantador. Um lugar onde quis fazer uma escola perfeita, mas que era tão inalcançável para os que não sabem de educação e mandam nos apoios institucionais que não conseguiu suportar financeiramente sozinha quando deixaram de a apoiar. Belgais é um lugar obrigatório de visita para assistir seus concertos, a vida em puro movimento da natureza. Onde talvez antes do concerto você pode, quem sabe, comer um pão feito pela pianista.
Maria João Pires chama a nossa atenção, mulheres, para a importância de acreditarmos no que sabemos, de falar o que pensamos, de recusar o que é pernicioso e negativo para nós, independentemente do que as vozes “certas” e “intelectuais” indicam. De seguir o nosso caminho mesmo com os dedos apontados por quem não paga nossa comida nem quer saber se temos uma cama limpa onde dormir. Ela sabe que se não tocasse tão bem, seria esmagada. E segue a vida, mantendo e cuidando sua “força” e sua “proteção” – o piano. Ouvi-la tocar piano é um momento que devemos guardar bem guardado dentro de nós. Tem um respeito e um carinho por todos os compositores, que acredito que sejam seus companheiros de vida no dia a dia. Não percam. Segue link com entrevista completa. Obrigada, RTP e obrigada Maria João Pires.
Ana Santos, professora, jornalista
“Mãos Que Movem o Mundo” – Maria João Pires, pianista