Você vai ver um filme do Senegal, África e é invadido por um traço quase apagado da nossa civilização e que toma conta do filme inteiro, te invade – a singeleza.
O que é o singelo? Por quê nos perdemos disso, totalmente? Uma criança de qualquer país cosmopolita ficaria desenhando no meio de uma aventura cheia momentos de descoberta, de uma aventura pra se contar pra uma cidade inteira, durante muito tempo, só porque inferiu que devia fazer uma lembrança, dar um presente - e crianças não têm dinheiro ou não costumam ter dinheiro ou ainda não precisam de dinheiro para mostrarem que se lembram de outras crianças. Por quê “dar uma lembrança” virou “mamãe tem que comprar”?
Na China, um presente é um processo onde quem vai dá-lo, pensa no alguém “recebedor” dele. E quem dá o presente perde muito tempo pensando no recebedor: do que gosta, de como ele pode ser surpreendido pelo seu conhecimento de seus gostos, suas emoções... a coisa mais importante, aquela que está além de toda a produção, é o presente que uma criança prepara para a outra durante o filme – ela escreve a história que viveu e desenha o roteiro de tudo o que aconteceu para dar à pessoa que propiciou a aventura.
E o filme é só isso? O filme é tudo isso. Há um pouquinho de dispersão no início, mas sair de Paris pra chegar ao interior do Senegal não precisa ser um processo assim tão objetivo, creio. E falando de cultura, ancestrais, educação de casa, aquilo que a gente não pode fazer que é desfeita – tudo aquilo que você olha pra uma criança cosmopolita qualquer e não vê, não escuta mais porque não foi educada para ser educada.
Na nossa educação cosmopolita, as crianças têm curso de inglês, vão à natação, jogam games, jogam games, games, games têm TV no quarto e se isolam no computador, fazem o dever de casa o mais rápido possível, estudam o suficiente e no máximo brincam no play do prédio. Por isso o filme é especial – é como se a gente pudesse rever nossos valores e trocá-los um pouco de lugar de importância porque tem um garoto nos apontando para o que não vemos mais. Não há polarizações, as pessoas têm genuína curiosidade, olham-se, sorriem e lá está o menino comum, que não fala demais, mas interage, se comunica, faz perguntas que o adulto estranha mas responde. Tudo o que fomos e não entendo porque estamos deixando de ser.
O Bug Latino nasceu porque as crianças não conseguem colocar o que pensam em palavras, os adultos não conseguem exprimir seus sentimentos, suas frustrações, porque não conseguimos nos comunicar verbalmente como antes. Porque as crianças preferem ficar jogando games, games, games; porque os adultos se sentem aliviados quando as crianças não os enchem de perguntas difíceis de responder.
Portanto, JORNADA DA VIDA é um filme singelo e difícil de aceitar. Quer for ver, vai ver.
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
Filme que tem um início pouco credível, um roteiro vago e os diálogos e representações pouco verossímeis. Mas, à medida que mergulhamos no filme, tudo parece fazer sentido. E é tocante. A importância que os antepassados e a terra onde pertencemos têm na nossa vida está neste filme. E nos lembra de respeitar sempre de onde viemos e quem foram e são as pessoas importantes na nossa vida e no nosso caráter. Mostra também que mais importante do que ter dinheiro e luxos, é ser inteiro, honesto e grato com a vida e com os outros. Enquanto o mundo de consumo nos tenta hipnotizar com novas roupas, carros, livros, casas, ter mais e mais, este filme nos lembra de quando só tínhamos um livro e o tratávamos como único e especial. Nos lembra que algo que quebra ou fica danificado não precisa de ir para o “lixo”. Pode ser recuperado, “curado”, renovado.
Yao também nos ensina e relembra muitas coisas. Um menino que mora numa aldeia com poucos recursos. Procura a felicidade de forma inteira. Quer conhecer o escritor que ele ama e faz tudo o que pode para conseguir. Sem maldade, sem espertezas, sem ser malandro, nada, apenas uma pessoa que quer fazer algo muito importante para si e faz. E atua quando acha que pode ensinar, conhecer, retribuir, ajudar. Um menino admirável. E no final dá uma prenda....talvez a melhor prenda que alguém pode receber...por que nela está amor, cuidado, respeito, atenção, admiração num gesto incrivelmente lindo. Não posso contar o que é, precisam ver. Vão entender e concordar comigo.
Visitar o coração do continente africano é uma experiência inesquecível. Se você de alguma forma pertence a esse continente, o impacto ainda é maior.
A cor da terra, lugares distantes e isolados, vidas simples, sem luxos. Estes países claro que também têm pessoas muito ricas. Demasiado poderosas e ricas. E que têm tudo. Mas a magia está nas pessoas que nada de material têm. Crianças que brincam com um pedaço de madeira preso por um fio e que vira o lindo brinquedo - trem/comboio - e mais bonito do mundo. Por que com eles verdadeiramente o que interessa é o que imaginam, não o que existe. Se divertem cantando, dançando, fazendo teatro, na rua, todo o dia. Com fome, com roupa velha e furada. Essas têm imaginação, coração bom e puro. Porque te fazem imaginar e ficas horas, dias com elas aprendendo o que afinal é saber viver e fazer o bem.
O ser humano que se vicia em consumo precisa de ver filmes como este para acordar.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8058904/
Circuito Saladearte