Numa semana tão dolorosamente voltada para o Brasil e quantas vidas precisamos perder para retornarmos para a nossa vocação de empatia; num momento onde parece que todo mundo não ta nem aí pra nada, aparece na minha frente “SE ALGO ACONTECER, TE AMO” – uma animação, de uns 20 minutos, sem falas, nada de 3D, grandes sons, quebras ou rupturas. Mas que obra prima! Primeiro porque há no filme a sequência exata da tristeza que acho, a essência do que qualquer brasileiro está sentindo. Agora a COVID, para além dos quase 450 mil rostos alinhados, tem uma marca registrada de tudo o que foi falado – a COVID mata qualquer pessoa e por isso matou Paulo Gustavo, o fofo, o engraçado, o jovem, o talentoso, o espirituoso, o espiritualizado, o corajoso que nunca precisou de bandeira nenhuma a não ser ele mesmo.
As metáforas – lindas – colocando o estado de espírito dos pais como personagens, os caprichos da vida – a mãe que esbarra na máquina, que bate na bola, que cai da prateleira, rola pela casa até bater na toca discos... E ver aquela a distância abismal se transformar em proximidade é tão bonito...
Na história do desenho, a menina teve sua escola invadida e tomou um tiro. Na nossa história, uma creche foi invadida e várias crianças foram mortas por faca; depois a polícia do Rio surta, assume um lado dúbio, escuro e indefinível e violentamente mata 27 pessoas. As sombras da nossa animação brasileira foram muito mais densas e terríveis... bandidos ou inocentes, quem decide quem vive ou morre não é a polícia.
Mas como no desenho, creio que semanas de pesadelo assim podem nos unir como uma família em luto. Como uma família que vê que esteve à beira dessas perdas terríveis e não quis se envolver – mas que precisa se envolver.
Eu convido todos a verem esse desenho na Netflix, pensando em coisas que precisamos mudar nas nossas atitudes. O Paulo Gustavo não precisava morrer assim porque as vacinas existem; o delegado de Santa Catarina tem que investigar o que aconteceu com essas crianças minuciosamente porque precisamos entender o que rompe com os nossos freios a tal ponto de crianças serem assassinadas na escola; o mesmo se aplica à isto, chamado equivocadamente de polícia do Rio. Vá se estudar porque quem mata precisa ir pra cadeia. Lugar de quem mata qualquer pessoa é na cadeia.
Os corações de tantos pais que perderam filhos estão rasgados. Mas o espírito humano pode – e só ele pode – nos fazer ressurgir das nossas cinzas.
Há um dia das mães que será chuvoso e triste dentro de cada um de nós. O Brasil perde mães, que perderam filhos, que perderam maridos, que perderam seus pais e amigos. Que amanhã nasça a nossa marca de nunca mais sermos vencidos de novo pela dor da omissão.
Assistam o desenho. Chorem por todos os que perdemos. Vamos nos unir contra quem mata, por favor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Todos, mais tarde ou mais cedo, vivemos lutos. Depois de iniciar a pandemia nem se fala. Todos entramos nessa caverna e todos de alguma forma teremos de aprender que a saída será por outro lugar. E aprender a encontrar a saída. E fazer coisas boas com isso. Todos vamos tentar manter vivas para sempre as pessoas que perdemos. Todos mudaremos. Todos poderemos ser ainda melhores do que éramos.
Não admira que esta curta de animação tenha ganho o Óscar de 2021. Que tenha ganho tantos prêmios. Merece tudo isso e merece e deve ser vista.
Simplicidade, assertividade, sensibilidade, maturidade, esperança, amor, vai encontrar aqui. Um traço simples, desenhos de uma extrema beleza, aparentemente imperfeitos. Não existe uma palavra, um som e tantas palavras, tantas frases, tantas conversas, tantas memórias encontramos ali. É emocionante, é intenso, é belo.
Tem, para além de toda a qualidade gráfica, de direção, importantes intenções terapêuticas, se quisermos chamar assim. Vemos saídas, vemos respostas, vemos carinho com a dor e estímulos para os que estamos presos na caverna sem perceber que precisamos de construir uma nova saída e ao mesmo tempo manter o amor e a presença das pessoas que perdemos, dentro de nós, em nós, nos nossos dias.
Imperdível. Imperdível. Imperdível.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações
Animação em Curta – Óscar 2021
Sinopse: Após a tragédia, dois pais enlutados viajam através de um vazio emocional enquanto choram a perda de um filho.
Diretores: Michael Govier, Will McCormack
https://www.imdb.com/title/tt11768948/
Trailer
https://www.youtube.com/watch?v=3kH75xhTpaM