Que filme exasperante. Cheguei a perder a paciência com ele, dei uma volta pela casa pra tentar tornar aceitável o que os advogados fizeram de uma simples separação, as discussões inúteis, disputas descabidas, mesquinharias de todos os níveis quando eles apenas não viam mais a alma da relação que tiveram.
Lá perto do final, finalmente eles se humanizaram novamente e “sentiram”. Não o amor, mas o luto pelo amor que se tinha ido, numa cena super doméstica, o pai ouvindo o filho ler, ajudando nas palavras mais difíceis. A vida está tão estranha que nem sei dizer quantos pais, aqui no Brasil, sentam ao lado do filho para ouvi-lo ler... claro, com paciência pra corrigir, convivendo com ele, tendo prazer em conviver.
Daí o filme cai na sua cabeça porque vem a consciência terrível de que estamos nos perdendo rapidamente de nós, de quem nós somos e as nossas relações. Que ficar berrando palavras de ordem no Face ficou mais importante do que sentar e falar com as pessoas que fazem parte da nossa vida, olhando nos olhos delas. Que nós erramos e acertamos e precisamos reaprender a discordar com calma, clareza e assertividade. Que o incêndio na Austrália é terrível gostando ou não da Greta porque ela só é importante porque está defendendo o seu direito de ter filhos e netos, da mesma maneira como ela é filha e neta de alguém. Apenas as pessoas gritam, tentam se destruir com palavras e ficam felizes porque conseguiram 1 hora por semana de visita além do usual – mesmo que não a use pra nada, como ler com seu filho.
Um filme proposital e despretensiosamente árido, onde Adam Driver está muito melhor do que Scarlet Johansson, mas onde a gente vislumbra a dureza para onde as nossas opções de vida nos estão levando.
“A Amazônia queima assim todo ano!” “Quero ver a Greta falar alguma coisa do incêndio na Austrália!” Se não fosse o Papa a dar um tapa na mão da moça, iam dizer o que, aqui no Brasil? Iam fazer o quê?” E os animais insistem em morrer, os índios insistem em ser assassinados, a natureza insiste em acabar, a fumaça insiste em cruzar continentes, como gritos no silêncio. Para nós, como gritos no vazio, na surdez. A Greta não é a única adolescente no mundo que quer conversar com os adultos, mostrar que estamos errados. Mas os adultos, antes de ir gritar no Face e contratar advogados poderiam apenas sentar e civilizadamente conversar, buscar um entendimento.
Fiquei aturdida com o filme. Tem muita gente que não merece o final que estamos desenhando pra nós mesmos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Adam Driver, um ator espetacular. Amei. Scarlett Johansson já é consagrada e excelente, mas Adam tirou minha atenção quase toda. Sensacional.
Realmente ver um filme no cinema tem uma magia que não tem comparação. Além disso, você está ali para se dedicar ao filme por completo. Por outro lado, a Netflix é uma possibilidade sensacional também e nos dá oportunidade de ver imensos filmes e documentários importantíssimos. Mas, filmes como este, lentos, incómodos, tornam-se muito difíceis de serem vistos com a devida atenção, em casa. É necessário um grande esforço. O pensamento tenta fugir para tarefas, celular, fome, banheiro, etc. Isso dá a sensação real de como o filme está a intrometer-se na nossa “paz”. Você resmunga o filme todo, também tem isso. Você se permite ter comentários que não teria na sala de cinema. Mas no final, leva um soco em forma de tristeza e pena do quanto nós fazemos mal a nós e aos outros. Do quanto destruímos à nossa volta sem nem percebermos. E do quanto perdemos.
As palavras precisam voltar a ter importância, a ser um compromisso. “Tem a minha palavra”, era tudo. Precisa de voltar. Precisamos voltar a confiar e a saber guardar segredos. Alguém ainda sabe o que são segredos e o que se faz com eles? Precisamos voltar a saber dividir a vida íntima e pessoal da vida profissional e social. Misturar tudo é provocar uma grande confusão, muitas vezes sem volta. Adultos que não sabem a diferença entre o privado e o social, entre ter a confiança total de outra pessoa e usufruir de informações pessoais dessa pessoa de forma abusadora podem fazer coisas que têm um nível de destruição moral, emocional e social, devastadoras. Quem não conhece pessoas que para se darem bem, para obterem espaço, fama, prazer, etc, expõem segredos como quem respira? Até em forma de piada, de humor? Vale tudo. É impressionante assistir a um momento desses, é impressionante saber de situações dessas que lesam amigos, familiares, você. Pela minha experiência, não adianta o esforço de ir atrás da destruição para corrigir e esclarecer. Ainda é pior.
Este filme é difícil por apontar de forma contundente como tudo isso acontece. Aqui, em forma de casamento que se torna divórcio, mas existe em muitas outras formas. Você e a pessoa ou pessoas em causa assumem se respeitar e ser verdadeiras seja em que situação for. Neste caso é uma advogada que invade a “quarta parede”, mas novamente, existem muitas formas disso acontecer. E, quando alguém destrói a confiança e permite que outros possam dar opinião, dar conselhos e decidir por você e por todos, a descida da ladeira começa. A vida que pode não estar a desenvolver-se bem, piora vertiginosamente quando se aceita que alguém exterior venha ajudar. Quando esse alguém o que quer é uma razão para ganhar dinheiro. E como... Valores e valores, despesas e despesas e espaço para talvez mais despesas se for necessária uma viagem, uma reunião, sei lá o que mais. A criatividade para criar despesas é sem fim. E, de repente, você que precisa de ajuda e que vai equilibrando suas economias cuidadosamente, se enrola numa vida de mais problemas para resolver os problemas, despesas devido a despesas e se perde de você, se perde do que quer da vida e perde demasiado. Às vezes perde tudo. Quando aceita lidar com a confusão que criou para resolver os problemas, tudo parece acalmar (pode demorar anos, uma vida inteira). Mas você já não é mais a mesma pessoa, teve de criar outra vida, se perdeu na resolução da complexidade de despesas e problemas multiplicados. Asfixiante e assustador.
Ainda tem mais. Se você viver numa cidade e a situação se desenrolar em outra cidade (no filme, mas pode ser países diferentes), os problemas triplicam.
E ainda tem mais. Você chegar ao ponto de ter de ser avaliado por uma “técnica/especialista” para saber se você é um bom pai, uma boa mãe é algo que ultrapassa todos os limites. Ter de decorar a casa e comprar móveis adequados. Jantar com seu filho e ter uma técnica na mesa assistindo, assistindo você estudar com seu filho, etc. Poupem-me. A avaliação de comportamentos humanos, a avaliação do que é saudável, aconselhável, adequado, em famílias, é algo que ainda será muito falado já que é um mundo novo a surgir. Que dá medo... Me recorda as pessoas que por serem casadas falam com as solteiras ou divorciadas como se fossem melhores. As que têm filhos e falam com as que não têm, como se fossem superiores. As que têm muito dinheiro falam com as que não têm ou têm pouco, como se soubessem tudo da vida. Inacreditável.
Por último, os advogados. Uma classe que é, que pode e que deve ser respeitável e fundamental na sociedade. Pena que muitos, como em todas as profissões, estragam a sua reputação enquanto classe, pela forma deselegante, incompetente, abusadora, interesseira, manipuladora como agem e se aproveitam de pessoas que as procuram. Pessoas que quando decidem procurar um advogado já estão destroçadas, frágeis. E muitos, aproveitam o momento para “dar o seu bote/aproveitar” o momento do moribundo. Deplorável. Quem sabe essas pessoas vêm o filme e percebem como esse papel é ridículo. Nada elegante e nada humano. Será que aceitam aprender? Seria civilizado no mínimo.
Vejam o filme, mas no cinema se puderem. E se preparem. O soco é forte.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt7653254/
Netflix