A mutilação genital feminina não deveria ser mais tema. Mas quando se pensa que 200 milhões de mulheres e crianças sofrem mutilações criminosas, nós entendemos que se precisa falar sobre isso no mundo inteiro – e muito.
Nossas estreitas ligações com a África não nos levaram à prática de mutilações – ainda bem. Mas isso não transforma a questão em algo inexistente, no mundo.
O DOC ESTE É MEU CORPO, apesar da estética lenta dos depoimentos sucessivos, mostra com clareza dura um mundo onde a mulher precisa “estar limpa” para poder cozinhar para seu marido. Para poderem conviver. Um mundo onde a questão religiosa se funde ao machismo e ao patriarcado para forjar mais uma forma de rejeição, tortura e sofrimento na mulher – por mais nada, por nenhum outro motivo que não seja o fato de ser mulher.
Com tomadas fechadas muito bem escolhidas, o filme aponta o dedo, quer revelar, aproxima o plano até que os olhos fiquem frente a frente. E ali estão – tantas mulheres – que veem com horror o próprio destino de “empunharem e usarem suas facas” – mas sem coragem de fugirem dele. Sem coragem para se nomearem como agentes de um problema de saúde pública que pode ser sanado, mas só o será se todas nós, juntas, dissermos “não”.
Não é pecado, não é possível que se pense isso, não é sujo, não está escrito em nenhum lugar, não importa a religião, nem o continente, nem o povo. Nosso corpo está completo, não precisa que se retire nada. Nenhum pedaço do corpo da mulher é masculino.
É crime exatamente por permitir a prática de crueldade contra alguém. No caso mais frágil. No caso, desprotegido. Prática que “camufla” gritos lancinantes, com cantos. Inesquecíveis.
Não é uma circuncisão. É uma mutilação, um ataque, um crime.
Portanto, embora o documentário precise de um pouco mais de ritmo e ação, o fato de podermos imaginar o processo, a dor, o sacrifício de vidas, as infecções, os danos, os traumas – faz com que ele seja absolutamente necessário em todos os lugares do mundo. Porque aqui e em qualquer lugar do mundo, o tema precisa ser discutido para ser socialmente proibido, moralmente condenável e não apenas criminoso – só assim o mundo poderá evitar que até 2030 mais 15 milhões de meninas sejam mutiladas com a autorização de suas famílias.
Um não, por favor. De cada uma de nós, uma palavra de convencimento, um pensamento objetivo para justificar a proibição moral, uma rejeição ao homem, à família que queira usar um princípio cultural tão cruel, tão primitivo, machista, insuportável contra outra mulher.
Um não, por favor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Meu Deus!!! Pensava, inocentemente, que esta prática já estava praticamente erradicada. Não imaginava que continuava a existir, em 50 países, 200 milhões de meninas, mulheres já a sofreram até hoje e a estimativa até 2030, é de mais 15 milhões de meninas e mulheres a sofrerem. Em 8 anos, 15 milhões...
David Bowie era um homem especial, para além do artista que conhecemos. Sua mulher, dizem que fugiu do seu país para evitar sofrer essa loucura. David Bowie sempre deu a cara pela luta contra a mutilação genital feminina e sempre esteve do lado da sua mulher. É muito importante que todos os homens o façam. Que os argumentos que se apresentam para justificar a mutilação possam ser desmistificados, confrontados e se possa informar as pessoas que qualquer prática que cause dor, mutilação, dano na saúde das pessoas, desobedece aos direitos humanos e deve ser criminalizada. Hábitos precisam deixar de ser hábitos quando fazem mal a alguém.
É arrepiante ouvir a descrição dos 4 níveis de mutilação genital feminina. É arrepiante saber e imaginar mulheres a fazerem essa prática a outras mulheres. É arrepiante imaginar as sequelas físicas, psicológicas, sociais. Como é possível isto ainda acontecer?
Imaginar que poderia ser eu, você, todas as mulheres que conhecemos, se apenas tivéssemos nascido na Guiné Conacri, na Eritreia, no Egito, na Guiné Bissau, etc... Se apenas tivéssemos nascido nesses países...
A vida é tão volátil, tão etérea, inconstante, instável, incerta. Mas ela também nos instiga a fazer algo para que seja construtiva, para nós e para os e as outras. O documentário refere a importância de estarmos atentos e atentas a essas práticas junto de nós, do lugar onde vivemos, por onde viajamos. Nos preocuparmos em melhorar a educação, a formação das pessoas para que elas possam entender como são graves algumas práticas que existiam mas que não podem existir mais. Conversar, quebrar tabus, quebrar vergonhas. Estes assuntos não podem ter segredos sob pena de esconderem crimes.
Este é o meu corpo. Eu devo, eu mereço e preciso ter poder sobre ele. Ninguém tem poder sobre o meu corpo, sobre o seu, sobre o de ninguém. Ajudemos a erradicar estas práticas. Veja o documentário por favor. Precisamos saber, precisamos impedir que continue.
Ana Santos, professora, jornalista
Programa completo:
https://www.rtp.pt/play/p10172/este-e-o-meu-corpo-mutilacao-genital-feminina