Um filme perturbador por muitos motivos. O principal, talvez parta de uma afirmação que um psiquiatra me fez há mais de 40 anos atrás: “Louco é o cara que perde tudo, menos a razão”. Em ESTAMIRA, esta é uma verdade que vai se insinuar e perseguir seus pensamentos porque a vida pode lhe reservar muitos percalços, mas... de repente, quase todos fazerem parte de uma só vida? O quanto de sofrimento uma mente consegue absorver antes de se fragmentar? E Deus? Permitiria isso sem reagir? Ou pior: acusaria a vítima de louca, reacionária, suja? A censuraria com olhos e palavras?
Há uma ira em seu olhar que, sinceramente, talvez também fizesse parte do meu, diante da mesma vida. Portanto, a palavra-chave do DOC é mesmo “perturbador”.
Há momentos em que adorei a fotografia, outros nem tanto e ainda outros que não gostei. Há cenas memoráveis: Estamira e os raios, as tempestades, o fogo. Estamira como uma força bruta da natureza, uma explosão de reação à tantas e consecutivas perdas. Estamira e o consolo acolhedor do lixo...
O que lamentei bastante foi o áudio não ter se ocupado em fazê-la ficar mais compreensível. Bem, ela é psicótica e estava surtada – ok. Mas não entender tudo acaba por dispersar e o filme não merece um segundo de dispersão.
A cena dos “idiomas estranhos” é antológica. Me lembrou de alguma forma os cultos que usam exatamente os mesmos recursos – ali permitidos – e que no caso de ESTAMIRA nos chacoalha por inteiro.
Sabendo que você vai reagir ao filme, vai se horrorizar, vai se defender dele, é obrigatório que o veja. Muitas vezes, apenas queremos nos livrar da dor e a despejamos nos hospitais ou asilos – algo deplorável e inaceitável. Mas muitas vezes, a loucura lhe premia com a verdade – não é o que todos dizem querer? E a sordidez do mundo fica nítida e imperdoável.
Assista. Opine. Ouça. Converse.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um documentário dificílimo de assistir. Tive sono, impaciência, intolerância, irritação. Sei bem porquê. Eu, como muitas mulheres, passamos perto de ficar assim. Tivemos sorte. É talvez longo demais, talvez duro demais, para quem nunca sofreu assim. Não sentimos os cheiros e a cor do filme – preto e branco - também nos poupa muito.
Estamira é uma mulher fácil de acusar, de criticar, de zoar, de desprezar. Vive de uma forma inacreditavelmente feliz num lugar insuportável – uma lixeira. Está degradada, envelhecida, com problemas mentais. Podíamos ficar por aqui e tudo estaria “redondo”, certo. Uma mulher que não foi capaz de lidar com a vida. Acontece que para uma pessoa, uma mulher chegar a este lugar – interior e exterior – viveu coisas que ninguém merece viver. Além disso, a sociedade não a protegeu, não a apoiou. Então chegamos a um lugar horroroso – o lugar das mulheres que são maltratadas, atraiçoadas, estupradas, violentadas, agredidas e a sociedade as silencia. Ao silenciar o horror, indiretamente “aprova” quem as tratou mal. Estas mulheres não são cegas, surdas ou mudas. Elas sabem, elas sentem, elas percebem o que se faz com elas e com a sua vida. E é isso as destrói profundamente. Quem, no seu lugar, resistiria a este tipo de massacre? Os homens que as maltrataram são aceites, perdoados, incorporados na sociedade e elas excluídas. Elas apontadas. Mais ainda quando a degradação física e mental se torna visível. E a profecia auto-realizadora se cumpre – o que chamamos sociedade, ou as pessoas que manipulam a situação, escolhem o lado dos que estão no lugar certo, dos que mantêm a aparência. A mulher sofreu injustiças e horrores mas com aquela aparência degradada, com o descontrole verbal e físico quando ouve falar em religião ou sobre os homens que as maltrataram, é criticada, apontada, vivendo numa lixeira, não é mais vista como pessoa com razão e é excluída socialmente. Já o homem ou homens que cometeram os horrores, se cheirarem bem, tiverem ar de saudáveis, fizerem festas e convívios convidando toda a gente que querem calar e sorrirem na fotografia, são aceites e tudo lhes é perdoado. E a vida segue...lamentavelmente...
Tem um neto de Estamira que gela o nosso coração e nos recorda coisas que não devemos recordar. Uma criança de uns 9 a 10 anos, cheia de certezas, com aquele olhar de desprezo, o riso de superioridade, olhando a avó – quem lhe ensinou tudo aquilo? Quem ensina a massa social a desprezar mulheres maltratadas, injustiçadas e a tratar bem os homens que as maltrataram? Que lugar é este que escolhemos estar enquanto civilização? Estamira em outro contexto, com um mundo mais justo, poderia ser um exemplo. Mas o mundo prefere dar espaço e oportunidades a quem não presta, dizendo que presta. Estamira representa a mulher que grita por justiça, que grita corporalmente as monstruosidades que são feitas e que sabe e vê tudo. Mas o mundo insiste em querer ver os “limpinhos”.
As pessoas podem ter até predisposição para doenças, para desiquilíbrios, mas a sociedade tem um papel extremamente importante na possibilidade de zerar as predisposições. Basta bondade, basta justiça, basta honestidade. É tão fácil... Porque fazemos, enquanto sociedade, o caminho errado, sabendo onde está o caminho certo será sempre muito difícil de aceitar e de assistir. E se for mulher ou do gênero feminino ou negra fique atenta sempre. Cascas de banana para a nossa vida escorregar tem por todo o lado.
Por último, é inacreditável assistir a uma sociedade que decide quem é justo, quem é honesto, pelo corpo com ou sem barriga, pelo dinheiro que tem no banco, pelo cargo que tem. Estamira seria aceite se engolisse todos os horrores que viveu e sorrisse para os seus carrascos e para os que são iguais aos seus carrascos. Se seu corpo não denunciasse a dor e o sofrimento. Se aceitasse a hipocrisia.
Estamira sabe bem o que foi feito ao seu corpo, à sua mente, tem uma sensibilidade impressionante. E nos envergonha porque presta mais do que nós.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Documentário sobre Estamira, uma mulher de 63 anos que trabalha há mais de 20 anos em um aterro sanitário no Rio de Janeiro. Esquizofrênica, mas muito carismática, ela é a líder de uma pequena comunidade de idosos que vivem do lixo e tem uma atitude muito lírica e filosófica perante a vida.
Direção: Marcos Prado
Elenco: Estamira
Trailer e Informações:
https://www.imdb.com/title/tt0427221/