
...E fomos o mais rápido possível ver o filme novo de Tarantino pra comentar com vocês. Importante: quem nunca foi ver um filme dele e tem um medinho da propalada violência das cenas, não deixe de ver, embora seja verdade – ele faz em carga alopática aquilo que a TV nos manda ver em doses não tão homeopáticas assim. E dá certo porque nitidamente percebemos que nós podemos registrar que o nível de violência humana é alto sem precisar mostrar pessoas queimadas, esburacadas e devoradas todo dia, nos meios de comunicação, o dia inteiro. Aqui mesmo em Salvador, o nosso cardápio para o almoço na TV sempre tem uma “tripinha ou sanguinho”, por exemplo.
O filme também aponta com bastante clareza o nível de hipocrisia, insegurança e pobreza de juízo crítico em personalidades que olhamos – hoje em dia “seguimos” – com absoluta credulidade. O ambiente das gravações - ao ser mostrado com o nível de ironia realista com que foi mostrado - praticamente esfrega na nossa cara que vivemos e consumimos “aparências”, dinheiro, mansões – mesmo que as mansões fiquem uma encostada à outra, numa versão chique das vilas cariocas, onde você mora em casa, embora ela seja “parede com a parede” com a do seu vizinho. Inclusive, há cenas onde a desordem é a cena a ser mostrada, numa crítica que aponta o que está por trás do que as câmeras apontam – coisa que a gente cansa de ver quando faz a direção de edição de um filme, por exemplo. Para embelezar, “se photoshopa” tudo da vida que queremos que as pessoas imaginem ter glamour, ao mesmo tempo em que tiramos todo e qualquer cuidado estético de segmentos inteiros da sociedade, ao mostrá-los na tela.
Adorei a abordagem dele sobre Sharon Tate e os malucos ao redor de Charles Mason. Inclusive, este foi o momento mais violento do filme e embora tenha sido over como sempre é, lá no fundinho há uma percepção de que seria mais justo, se tivesse sido assim, na vida real – uma percepção bem clara de que a ficção muitas vezes vai até a vida e propõe mudanças em ações que não deveriam ter acontecido daquela forma – as Torres Gêmeas não deveriam ter caído, Isabela Nardone não merecia ter morrido daquela forma, etc, etc. Bom, no caso de Sharon Tate, Tarantino foi lá e refez o acontecimento – um pequeno consolo, diante do pesadelo do fato.
Ver o filme dará a dimensão não apenas de atuações totalmente fora do padrão de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt, mas também de como não adianta muito você aparecer na fita como o melhor que existe, se afinal todos são iguais no básico humano essencial. Super filme. Super filme! No frigir dos ovos, todos fazemos xixi e cocô. Nós e os príncipes, nós e os artistas que seguimos. Pensamos, sentimos. Somos iguais, portanto.
Quem não for, vai perder!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Existe uma ponte na cidade do Porto, em Portugal, que durante muitos anos foi considerada a ponte com o maior arco de betão/concreto armado do mundo – a Ponte da Arrábida. O engenheiro que a fez, Edgar António de Mesquita Cardoso, era um homem com um pensamento único. Existem regras para construir pontes e todos obedecem criteriosamente para as fazerem bem. Ele sabia quais as regras fundamentais que devia obedecer e quais as que podia desobedecer, construindo uma ponte diferente, com algo que ninguém tinha pensado e sido capaz de fazer. Sempre que vejo um filme de Tarantino me lembro disso. Também ele sabe onde deve seguir as regras e onde pode ser diferente. Bem diferente. E se torna importante por isso.
Ver um filme de Tarantino é ter uma experiência diferente. Pensar que quando ele surgiu parecia alguém tão diferente que talvez não aguentasse o sistema. Mas ele se tornou o sistema. A lista de atores consagrados e famosos que fazem parte dos seus filmes é invejável para qualquer diretor. E surpreendente. Mais surpreendente ainda é ver o que aceitam fazer nos seus filmes.
O glamour, o aspeto cru dos luxos, a solidão do sucesso, as inseguranças dos que se desesperam por qualquer tipo de sucesso, as vaidades, as casas luxuosas amontoadas no morro/montanha mais desejado pelo universo.
O trabalho solitário e vazio de apenas memorizar textos, as festas onde tudo se podia, os grupos de vida “livre” nutridos por ácidos, a paz e estabilidade emocional dos que não conseguiram sucesso e cuidam dos famosos.
O realismo do modus vivendi do mundo cinematográfico daquela época é sempre incrivelmente objetivo nos seus filmes. Uma crítica muito peculiar aos filmes de western e de guerra. Os planos que realçam a beleza dos olhos azuis de Leonardo DiCaprio. A facilidade com que estranhos entram no mundo e nas casas de famosos.
A honestidade e caráter dos que cuidam dos famosos que se destroem é uma abordagem muito interessante e que mostra um olhar inteligente. De Tarantino claro.
E o sangue e as cenas de violência que tenho sempre dificuldade em assistir, mas que sei que fazem parte dos seus filmes e das notícias das TVs diariamente. Algo que estimulamos erradamente há muitos anos e que estamos pagando caro por isso.
Um filme obrigatório, principalmente para quem tem mais de 50 anos.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt7131622/
Circuito Saladearte
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha