O que esse filme tem demais? Falando sério? Tudo. Primeiro e importantíssimo: como nós, latinos, estamos longe de um mundo onde, de maneira delicada, se fale das pessoas trans – nesse caso, mulheres trans - que não tinham o corpo adequado, mas que não deixaram de busca-lo com uma feminilidade, uma suavidade que aborta qualquer possibilidade de preconceito. Por quê? Porque um corpo não pode ser impedimento para a busca da felicidade. Se fosse assim, quem perdesse a perna, quem ficasse aleijado, quem ficasse surdo que se acostumasse a viver na escuridão do silêncio. A ciência entendeu isso, a neurociência explica isso e quem estiver comendo mosca ainda, lamento.
O filme tem a delicadeza para a abordagem da questão trans, tem uma forma própria para a condução dela e um questionamento interior, que captura as perguntas dos atrasados emocionais ou sociais ou seja lá que tipo de atrasados sejam – e que interferem no que é nítido, independe de influência social e convívio humano – desde crianças, as pessoas trans sofrem por não terem sua expectativa de corpo atendida, ao viverem e terem sua existência social.
A passagem do tempo, o desenvolvimento da aceitação aos atrasados sociais que invadem a nossa vida, o desenvolvimento da paciência interna – tudo foi pensado e distribuído com generosidade budista. Tricotar – vejam vocês! – dá o tom “unissex” para a espera, a construção da ruptura total com o sexo anterior. E o produto final de tanto tricô – 108 pênis, assim como 108 são também as leis budistas e as contas do rosário – nos dão carinhosamente o nível de crescimento interior necessário para se ver de novo como parte da vida, quando todas as coisas ficam finalmente nos seus lugares e a mulher trans está pronta para finalmente trocar de nome e se casar. Uma poesia em cada cena, cada gesto, cada palavra, cada figura esculpida em lanchinhos que pareciam deliciosos.
Quem perder esse filme fica mais pobre como pessoa, ser social, figura humana porque aceitar é maior e precisa ser maior do que qualquer palavra, afinal. E ENTRELAÇADOS aponta como e porque isso deve ser feito por cada um de nós. Imperdível, necessário e absolutamente encantador!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, televisão e teatro
Que história mais triste e bonita ao mesmo tempo. Que tristeza ver como mães biológicas não dão valor aos seus filhos e à sua função no mundo. Que tristeza ver que as mágoas e feridas do passado nos marcam para sempre e nos podem impedir de ser felizes. Que tristeza ver que as crianças sofrem tantas coisas sem merecerem, sem nem saberem porquê, nem saberem que a vida também existe de formas mais felizes. E só aprendem a aceitar, porque não sabem que existem outras formas. E quando as formas de vida são construídas pelos que elas amam, elas acham que é assim e aceitam. Como podem imaginar que os que elas amam e consideram os melhores do mundo, lhes fazem coisas erradas e as prejudicam e as misturam no meio das suas mágoas. Existe muito a fazer pelo bem das crianças e pelos adultos magoados quando crianças.
Que lindo ver alguém que dá importância aos detalhes, aos cuidados, ao carinho pelos outros, pelas crianças, pelo que é certo na saúde de cada um, pelo que é certo em família. Ser mãe sem ser mãe biológica, mas muito mãe. Hábitos de alimentação, rotinas de refeições em família conversando – que me assusta pensar que é cada vez mais raro. Criar momentos de convívio com atividades saudáveis. Passear, andar de bicicleta, comer ao ar livre, viver em conjunto. Apreciar a natureza, cuidar a natureza. Escolher conversar, tricotar ou outra arte ou atividade como forma de lidar com as raivas, humilhações, injustiças, contradições, incómodos que sentimos durante o dia ou a vida. Lindo, lindo, lindo. Como a vida parece tão melhor quando é vivida assim. Precisamos continuar a tentar. Precisamos.
Ana Santos, Professora e Jornalista
Site com informações do filme:
https://www.imdb.com/title/tt5633706/
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