Há um momento onde o acúmulo de vergonha ganha uma tal dimensão que tudo o que se deixou passar, relevou, justificou, deixa de poder ser objeto de repetição nas nossas vidas. Brasileiras.
Servidão é um filme que aponta coisas inadmissíveis. Faz uma lista delas com a mesma neutralidade com que aponta como a sociedade pode ser abjeta, egoísta, cruel e decididamente brasileira.
Pessoalmente, eu coloco muito mais peso nas costas da sociedade atual do que na portuguesa, desde o século XVI, apenas porque o mundo era assim lá, e não precisa ser assim agora. Agora, existem recursos e conhecimentos e amadurecimentos que antes o mundo não tinha. Antes, quem perdia a guerra era vendido como força de trabalho para o vencedor e hoje isso nem deveria mais ser discutido, posto, visto. Deveríamos aprender isso em história, no momento em que faríamos a relação entre passado e presente e pronto. E, claro – passado e presente não deveriam se confundir diante de nós.
Renato Barbieri sequencia fatos, o que deveria ser uma coisa comum. Apenas que no nosso caso, a sequência é uma denúncia do que se tenta invisibilizar historicamente no Brasil e repito: a parte portuguesa não me incomoda tanto quanto a parte aristocrática atual. A parte que dá a carteirada, pergunta com quem você acha que está falando e acha – realmente acredita – que há dois padrões de vida – o seu e o dos outros.
A montagem sequencial dos fatos e dos comentários dói porque eu reconheço a mulher da SUV que finge que não vê o manobrista, vejo o desembargador que “coloca o guarda municipal no seu lugar”, vejo as festas expansoras de Covid com milhares de convidados chiques e inúteis e os faxineiros que “limpam a sua sujeira” - vejo a mim mesma numa rádio gaúcha, sendo chamada de “brasileira” – sem raça definida. Mas é uma das coisas que mais me dá orgulho em ser brasileira, hoje em dia – eu sou o futuro de uma única raça – a miscigenada, a mestiça, a café com leite “matizada” e espalhada pelo mundo inteiro – misturar na mesma calçada esfiha com acarajé e mandioca é uma glória nossa...
Minha relação com Rafael Sanzio dos Anjos vem de uma essência de raízes – nos conhecemos e fomos sendo raízes juntos. Nos vimos uma única vez e somos amigos. Como as árvores, nossas raízes compartilham saberes e quem sabe um dia poderão trabalhar juntas.
O fato é que, para além do filme, há uma dor que está nos olhos de quem foi filmado, de quem comentou o filme, está nos olhos de quem acompanhou a invasão da sala digital, a saída de todos e a organização de uma nova sala em questão de minutos. Dia 24 de novembro foi organizado sem João Alberto, mas ele foi visto nos olhos de todos. Nos nossos olhos há a nossa total falta de vontade de justificar, explicar – agora, queremos apenas mais passos na direção da igualdade.
Um filme que dói uma dor que João nenhum precisa gritar mais que está morrendo para a repelência aparecer. Repelência é nunca mais calar. É ter coragem para olhar nos olhos e dar passos à frente. Repelência é progredir.
Seja com que justificativa, não existe mais disfarce possível para o racismo, não existe mais explicação para não denunciarmos toda discriminação, toda aporofobia e não apontarmos todo o esforço que o Brasil ainda faz para manter as castas no seu devido lugar. E isso, Renato fez muito bem. Chega. Pára. Evolui, Brasil.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um documentário sóbrio, honesto, real! O início te prende imediatamente com as imagens gráficas da palavra “Servidão” e do Oceano Atlântico lembrando a dor que navega nas suas águas. Uma narração cativante, depoimentos emocionantes, abordagem contundente. Um documentário sobre escravatura, exploração laboral, abuso de poder. Como foi possível e como continua a ser possível??? Que cegueira é esta que aprendemos a ter na vida??? Obrigada Renato Barbieri, pela coragem, pelo documentário, por trazer à tona a realidade que precisa ser enfrentada.
As marcas patrimoniais e estéticas da presença portuguesa na Bahia, podem até indicar uma soma e uma contribuição, para os distraídos. Mas as marcas humanas, emocionais, físicas, alimentares, de vocabulário – uma mesinha de cabeceira se chamava, e ainda se chama “criado mudo”???? - embrulham de vergonha e horror os que têm alguma consciência. Quando as pessoas te olham com a dor do passado é como se você visse feridas abertas e descuidadas de 500 anos na sua pele, no seu coração, as ruas escorrendo sangue e berrando de dor. Sim, as ruas, as paredes das casas, o ar, as florestas, a vida. É asfixiante. Como o meu povo foi capaz? Como apenas se diz que era assim? Como me ensinaram que devia me sentir orgulhosa pelo que os portugueses fizeram na época dos descobrimentos? Como ninguém nem nenhuma instituição pede desculpas? Faz nada de importante? Visível? Constante? Como ninguém objetivamente tenta corrigir, mudar, ultrapassar todo este horror? Como portugueses, temos o dever de pedir desculpas, de ajudar a curar as feridas, de aprender com quem magoamos como podemos ajudar a curar, a “esquecer”. O que podemos fazer para diminuir tudo o que magoou, feriu, esmagou? Precisamos perguntar, ouvir, estar disponíveis. Não basta pedir desculpas como fazem as crianças que não querem sentir culpa e que querem ter espaço para voltar a fazer errado de novo. Muito menos agir como alguém a quem tiraram a propriedade e que chega como turista para ver como ficou e onde pode ainda "aproveitar". Pense no que gostaria que os outros fizessem se você tivesse feridas de 500 anos. Há demasiado a fazer. Tanto tempo e apenas se mudou a aparência, o nome e a visibilidade dos erros e dos abusos. Não seja cúmplice, se um problema passa na frente dos seus olhos.
Este documentário deve ser obrigatório nas escolas públicas e privadas do Brasil, de Portugal. No resto do mundo. Obrigatório!!!! Peço aos meus amigos portugueses que ajudem a divulgar o filme, a falar no filme, a colocá-lo nas conversas e como ferramenta de mudança de mentalidades. Nas escolas, nas instituições, organizações. O mundo não erradicou a escravidão. Apenas se mudou de nome e de forma. De alguma forma a vemos na violência com mulheres, com lgbtqia+, com idosos, com pessoas com incapacidade, com pobres, com refugiados, com quem está desamparado, com empregados que precisam desesperadamente de qualquer trabalho e aceitam valores miseráveis. E, como demonstra cruamente o filme, vemos na forma como poderosos chefes tratam seus empregados. Que vergonha...
Como é possível tratar melhor o gado do que os trabalhadores? Ter água para o gado, mas não ter para os trabalhadores? Exigir que as pessoas paguem as ferramentas que utilizam? A dormida e a alimentação? Considerar seus, programas de televisão criados por outras pessoas, só porque têm um lugar de liderança pública? Demitir pessoas por serem competentes, porque são incómodas? Onde está a vergonha na cara, a dignidade, a humanidade?
Pense que há 500 anos se fizeram coisas horríveis que precisamos corrigir, pedir desculpa, atenuar. Resolver. Mas pense também que hoje em dia existem formas igualmente destruidoras da humanidade, da nobreza, da dignidade das pessoas. E eu te pergunto, de que lado você está na vida? O que você faz? Porque o seu tempo é o agora e no agora você é “colonizador” ou “escravo”? Ou é neutro? Ou se revolta? Busca a justiça ou vive a sua vida e nem quer saber? Tenta ajudar quem é prejudicado? Vive curtindo e que se dane o resto? O seu tempo é agora e agora você precisa de fazer bem, para daqui a 500 anos não continuarmos a dizer que há mil anos aconteceu coisa ruim e nunca mais fomos os mesmos.
Algo que ainda não se resolveu durante 500 anos, é porque não se quis resolver. Precisamos entender isso para iniciar um caminho honesto e verdadeiro.
Agradecer enormemente o convite de Rafael Sanzio para assistir a este documentário. Convido os portugueses a assistirem a uma palestra sua. Só digo que no final tive uma necessidade absoluta de lhe pedir desculpas, em nome dos portugueses. E acabei chorando no seu abraço. De vergonha, de vergonha, de vergonha.Tudo o que Rafael Sanzio faz, torna o mundo melhor, atrai pessoas boas, coisas boas, mudanças, transformações. Nem as invasões patéticas na videoconferência atrapalharam. Elas ainda nos dão mais a certeza que é esse o caminho. Contem com o Bug! Se não fizermos, talvez ninguém faça.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Documentário de longa-metragem sobre o trabalho escravo contemporâneo com foco na Amazônia brasileira. Com narração de Negra Li, o documentário é um registro contundente de um dos maiores males do Brasil.
Diretor: Renato Barbieri
Elenco: Negra Li, Jônatas Andrade, Dodô Azevedo...
Link com informações:
https://www.imdb.com/title/tt11345420/
Trailer:
Vi o "trailer" mas gostava de ver o documentario integral .
A vergonha de que a Ana Santos tanto fala é dolorosa e não ha nada que se possa fazer para voltar atràs e mudar a mentalidade da época e a ambição dos povos colonizadores que não foram so Portugal . O que se tem feito é melhorar as relações entre os dois paises e ajudar no que é possivel . Pedir perdão ja foi feito mas isso não apaga os estigmas que ficaram nas diversas gerações ...
No entanto , a escravatura actual que se pratica muito na Amazonia e não so , como até noutras continentes , incluindo aqui a Europa , é pura violência e ganância ...
Passados 500 anos , as mentalidades deviam ter mudado e aprendido que todos somos seres humanos iguais e que os maus tratos e a exploração do trabalho (até de crianças) não se pode admitir .
A Aministia Internacional de que sou membro ha uns 20 anos ,e que defende os direitos humanos luta todos os dias contra todas essas injustiças mas cada um de nos deve fazer a sua parte ...
Fico muito triste com este Mundo de egoismo e violência mas sinto-me bem impotente ..