Uma produção do canal RTP – e que produção caprichada! Fiquei imaginando o que nos falta aqui pra alcançarmos um nível altíssimo – principalmente se pensarmos que este nível é para TV – incrível. Inacreditável. Imagens fenomenais, áudio perfeito, personagens que falam com muita clareza – até as crianças marcam muito bem suas diferenças, trilha que penetra na nossa alma. E só de pensarmos que está tudo em português, com acesso fácil, pelo link, já deve ser impensável não entrar e assistir.
Mas se tivesse menos qualidade técnica, ainda assim seria imperdível porque estamos ali – e da pior maneira. Portugal é o atual objeto de desejo dos brasileiros – tem escola e saúde de boa qualidade – todos dizem isso. E o primeiro impacto pra mim, brasileira, foi: se Portugal está tão no final da fila na Europa, em que lugar da fila estaríamos? Outra coisa que me ocorreu de chofre também foi que muitos portugueses falam e apontam tanto para o Brasil, quando a semente do que somos eu vi lá. Claro que eles evoluíram com referências europeias – até por causa do tamanho do País - e nós só tivemos à partida, o modelo português, sendo que depois o nosso próprio território gigantesco se incumbiu de dinamizar a injustiça social de todas as maneiras visíveis e invisíveis possíveis.
O mundo foi feito, é feito, continua sendo feito para as mesmas pessoas e seus descendentes conseguirem aquilo que lhes foi designado. Ou seja, uma criança nascida numa família de cientistas tem poucas chances de vir a trabalhar na agricultura, mesmo usando princípios científicos na “plantação de alfaces orgânicas baratas para todos”, por exemplo. É assustador o poder da aprendizagem. Minha sócia portuguesa, em nossas primeiras conversas – quando falávamos sobre essas coisas – não entendia bem quando eu dizia que ao aprendermos uma forma de fazer a coisa, deveríamos logo buscar outras porque a aprendizagem é boa, mas pode vir a ser uma prisão, se você acreditar apenas naquilo como única resposta. Minha mãe repetiu milhões de vezes seguidas que a maior herança que ela nos daria era certamente o estudo. Hoje, eu poderia afirmar que isso não é mais suficiente, que o mundo diminuiu mais a margem onde o estudo prevalece como criador de oportunidades. Antes do estudo, voltamos à idade média e vale aqui na Bahia, Brasil, tanto quanto vale em Lisboa, Portugal: “não reconheço o sobrenome... é de qual família? ”
Se não é isso, pode ser pior, como a política do Rio de Janeiro, Brasil – “quer entrar aqui, então escolha seu comando porque sem gangue, não se sobrevive” – como se garantir que o menino agricultor de Portugal, que tem tanto a ensinar ao menino rico – que por sua vez tem tanto a trocar também – não sejam condenados ao isolamento? Ou os ricos não pensaram que oportunidades seriam apenas curso de inglês e alemão, certo? Porque essa forma de pensar é absolutamente tacanha e empobrecedora. E também não garante felicidade – haja vista a quantidade de doenças emocionais. Os pobres se estressam em busca da sobrevivência e os ricos sofrem porque a riqueza não responde às nossas verdadeiras questões humanas. Estão aí as redes sociais, onde os que têm acesso à internet rastejam por aceitação. Mas uma vaca nos aceita; um cachorro nos ama devotadamente; com um cachorro posso falar o dia inteiro, quando em casa posso estar sendo condenada ao silêncio absoluto, à danação da ausência de palavras, já pensou nisso?
Por último, é impossível ver a injustiça social, a discriminação como ferramenta de privilégio, sem pensarmos nos políticos e suas malditas políticas. E nos enojarmos deles, por manipularem dinheiros que poderiam nos dar acesso mais fácil à vida. E digo nos dar acesso porque em um momento no passado, havia um banheiro nos fundos, que guardava uma caixa de papelão com preciosos pacotinhos de macarrão instantâneo que respondiam ao que havia para comer. Um pacotinho, um almoço. Um envelopinho de pó de galinha como tempero e aquilo ganhava vida, outro de pó de carne, legumes, etc. E quando havia algo, era aquilo. Minha herança em aulas e estudos foram usadas de todas as formas para me fazer digna do mérito de estudar, mas ainda hoje, entre “estes e aqueles”, o grosso da conta vai para aqueles. Sempre. E claro que nos acostumamos a brigar mais, a driblar mais as adversidades, a ganhar calosidade na pele e aguentar mais. O insuportável mesmo é ver que o adjetivo apenas muda de lugar e sai de mulher para velha com extrema facilidade, já que não há mais onde se apoiar para restringir. Mas pode ser trocado para distinguir negro, gay, gordo, já que o ponto exato da nossa vergonha humana é olharmos os pobres como inferiores.
Os pobres não são inferiores e têm muito a ensinar. OS POBRES NÃO SÃO INFERIORES E TÊM MUITO A ENSINAR.
Muitas pessoas falaram muitas coisas, mas eu gostaria de dizer uma que não foi dita pela RTP: temos que garantir que todas as classes sociais dominem com absoluta facilidade ao idioma e que tenham muito vocabulário. Muito. MUITO. Esta é a grande diferença para entender tudo o que se aprende na escola. Talvez a maior diferença entre todas. Aprender a simbolizar e a entender ao que é simbolizado. E este é o Bug Latino. Nós podemos ajudar. Nós queremos ajudar. Nós sabemos ajudar. Que político nos abrirá uma porta aqui? Em Portugal? Em algum lugar do mundo? Que empresário nos verá como auxiliares de uma ação que precisa ser tomada já? E oh, não – não somos aquelas pessoas que todos recordam o sobrenome familiar. Mas eu olho nos olhos de todos para perguntar um sonoro “e daí”?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV
Um documentário português, da RTP, sobre a pobreza, a desigualdade e procurando a solução para elas. Filmado em lugares lindos de Portugal que me trouxeram bastante saudade. A história diz que tudo melhorou muito para todos, mas porque a sensação não é essa? O Doc mostra como somos cruéis com quem não é como nós e algum dia precisamos resolver isso.
Os brasileiros precisam assistir a este documentário para verem um Portugal que insistem em não querer ver. Vão como turistas ou como pessoas que decidem viver a aposentadoria num lugar barato, com a mesma língua e com melhores condições de saúde, mas desconhecem o lado real e cruel de viver, viver em Portugal. Assim como nós os portugueses que visitamos o Brasil como turistas e ele é encantador. O Brasil turístico é moderno, sem preconceito e luxuoso. Viver é uma outra história. Bem diferente.
Portugueses e brasileiros, um dia precisamos nos olhar de verdade nos olhos. Ambos castigados pelo passado, pela memória, pela vida, pelo horror das injustiças da história, mas ambos podendo sobreviver com uma vida melhor se nos compreendermos, nos aceitarmos e nos perdoarmos.
Homens e mulheres, vocês também precisam se olhar sabendo que um não vive sem o outro, mas é necessário que um perceba o lugar do outro. Que cada um respeite e possa ajudar, apoiar e crescer com o outro. A mulher merece ser mais respeitada e mais considerada. Fazer o mesmo que o homem e ganhar menos não é certo. Isto é apenas um pequeno detalhe.
Pobres e ricos, exemplo na conversa doce entre os dois meninos, vivem vidas muito diferentes mas que somadas podem ser boas para todos. Se eu sou rico posso ajudar quem é pobre em vez de o explorar. Se sou pobre preciso ter direito a oportunidades sem olharem para a minha conta bancária ou para o lugar onde vivo. Sendo pobre dou melhor valor às pequenas coisas, algo que o rico perdeu. Não pode ser possível que pessoas morram de fome enquanto outras pessoas têm demais, estragam e dão ordens no mundo sem o entenderem nem o respeitarem.
Tratar de forma diferente por causa da cor da pele, da etnia, precisa terminar. Enquanto os políticos e poderosos avançam lentamente nesse caminho, nós podemos fazer a nossa parte todos os dias. Não dar valor a comentários ou a olhares sobre você que te rotulem como alguém menor. Seguir o seu desejo e sonho, independentemente da família de onde veio ou da sua condição financeira, ou cor da pele, ou etnia, ou gênero, ou, ou, ou. Quebrar essas barreiras invisíveis que tentam criar e retirar você do caminho porque decidiram que não é para você. Chorar o que precisar, depois seguir, mais um passo. Sempre. Não querer nada dos outros, se concentrar no que é para ser seu. E se puder ajudar outros a fazer o mesmo, faça. A opinião pública é uma energia, uma onda, algo indefinido e por isso, ninguém se sente responsável pelo que contribui, quando é algo prejudicial. O conceito de desindividuação, da sociologia, explica bem isso se quiser pesquisar. Por isso, enfrentar esses comentários, regras, proibições, necessita inteligência, paciência, muita esperança e tempo. Sei bem do que falo. Você está só nessa caminhada. Mas somos muitos. Se sinta acompanhada/o por nós e não desista. Nem que leve uma vida inteira para o conseguir.
É impressionante assistir a um documentário destes, onde se percebe que todos sabem como resolver os problemas, mas apenas se apresenta o problema, se diz como deveria ser resolvido e terminando o documentário, cada um volta para a sua mesma vida. É dito” “desigualdade e pobreza não são fenômenos inevitáveis”. São fenómenos criados por nós, pelas nossas escolhas. Como não tratamos este assunto como uma pandemia? Porque também é uma pandemia, apenas mais silenciosa. Resolver estes problemas, resolveria outros indiretamente, como a segurança, a criminalidade, as relações sociais e a opinião pública cada vez mais extremistas e conflituosas. Veja o Doc e tente fazer a sua parte.
Ana Santos, professora, jornalista
Episódio 1
https://www.rtp.pt/play/p7777/e498050/nos-portugueses-partir-para-nao-chegar
Episódio 2
https://www.rtp.pt/play/p7777/e498084/nos-portugueses-partir-para-nao-chegar