Há muito tempo não sinto tremendo mal-estar ao ver um documentário. Uma mistura de náusea, sono, vontade de parar pra andar pela casa e irritação, somadas a total absorção pelo tema. Uma sensação totalmente estranha, alheia ao meu desejo de sentir alguma coisa. Mas uma coisa é clara: nada se compara ao asco de ver uma pessoa em ação, usando a boa-fé humana, o desespero, para usufruir, usar, trair, atacar.
Aqui no Brasil a gente também tem uma tendência meio horrível de “diagnosticar ignorância” quando alguém cai em um golpe. Exatamente no caso de João de Deus, em Abadiânia, a questão profunda, a raiz, era a fé. Na melhora de doenças, principalmente. E ter esperança de que a sua, ou a saúde de alguém que se ama pode melhorar mediante a sua ajuda; mas o seu esforço abre uma porta que, se por um lado pode ser de santidade, como a de Chico Xavier, por outro, pode ser de vilania, como nesse de João de Deus, por exemplo.
Talvez porque tenha sido montado como um programa grande, como uma reportagem gigante, você nem tem tempo pra se preparar; não há uma “estética” que prepare seu emocional. Acho que é por isso que os episódios dão esse profundo mal-estar. Você vê Oprah Winfrey, o Ministro Barroso e Xuxa no mesmo rol de enganados e fazendo companhia a milhares de pessoas desconhecidas. Em comum, a fé.
O poder cria monstros. Criou mais este.
Todas as pessoas deveriam assistir para entenderem que até a fé precisa ter limites baseados no bom senso. E se você desconfiar de que alguma coisa não pode estar certa, recue. Não deixe de ouvir seu bom senso. Há relatos impressionantes de boa fé e credulidade.
Num País que sofre tanto por traições, que experimenta qualquer pessoa, na ânsia de viver dias melhores, João de Deus é um lembrete doloroso de que há limites pra tudo. Lá estão a tristeza extrema, a vergonha, o embaraço por se sentir usada na essência do que se tem de melhor e mais nobre. Uma série ultrajante e imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um documentário sobre o médium João de Deus, que por mais de 40 anos foi uma referência mundial em cirurgias e atendimentos espirituais no município de Abadiânia, em Goiás, Brasil, acusado de abusos e negligência. Chocante!
Tive muita dificuldade em assistir aos episódios todos. Queria muito ver, precisava de ver, mas foi muito difícil. Como é possível no século XX e século XXI, se fazerem cirurgias sem nenhum cuidado? Meu Deus... Como se não bastasse, é ainda mais inacreditável saber o que este senhor fez durante 40 anos a mulheres (só se tem conhecimento de mulheres) que iam desesperadas, exaustas emocionalmente, com medo da sua morte ou da morte dos que amam. Entre estas mulheres, a sua filha. Os abusos aconteciam enquanto rezava. Repito: Enquanto rezava. As pessoas consideravam-no como um Santo. Elas se entregavam aos procedimentos, aceitavam o que ele precisava fazer. Iam dispostas a tentar tudo. E, quando tinha a total confiança, abusava. É incrível. É importante que as pessoas vejam este documentário. Ou o documentário que está a sair pela Netflix. Escolha o que prefere ou o que pode, mas veja um deles. Precisamos saber o que se faz, o que acontece, para termos noção do que devemos ter cuidado. Para estarmos atentos. Para podermos proteger quem está numa situação frágil.
É muito incómodo saber que durante anos ninguém quis ver, todos esconderam, calaram, evitaram e agora todos fazem documentários. Porque fazemos isso? Foi preciso uma mulher corajosa falar insistentemente, se sujeitar a ser acusada de mentirosa para que todos e todas pudessem ter a coragem de falar e finalmente serem ouvidos? Como conseguiram estar calados os que sempre estiveram do lado, vendo tudo? Uma das mulheres abusadas foi a filha, gente. E por não aceitar sofreu muito. Isso dói demais.
É imperativo mudar esta forma como nós, enquanto sociedade, escondemos as verdades, olhamos para um lado, assobiamos para o outro e a vida segue machucando e destruindo os que nada podem fazer pela justiça da sua vida.
Considerar confiável alguém ou alguma ideologia, algum lugar, não deveria ser só porque pessoas famosas o acham. Ou porque todos o acham. É você que tem de achar, que tem de sentir, que tem de escolher, se informar e sentir que está fazendo a coisa certa. O que é importante para escolhermos um lado, quando temos de o fazer? Acho que precisamos todos de fazer essa reflexão porque está tudo fora de lugar. Muitos sabem bem na pele o que é ser maltratado e ter de calar ou ao falar ainda ser considerado culpado. Parece piada né? Pois parece, mas a vida está cheia destas piadas: os escândalos de pedofilia por todo o mundo, os escândalos de corrupção por todo o mundo, os escândalos de abusos por médicos, gurus da espiritualidade, gurus das religiões, gurus do mundo do espetáculo, etc. A lista não termina e não terminará enquanto calarmos e aceitarmos, enquanto fizermos de conta. Porque a precariedade laboral, a precariedade social, estão aumentando e podem piorar ainda mais esta situação. Precisamos fazer alguma coisa. Como estas mulheres que deram a cara e falaram sobre o que aconteceu com elas. Mulheres de coragem, mulheres incríveis.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse do Documentário de 6 episódios “Em nome de Deus” (Globo Play, 2020)
Investigação revela como médium mais famoso do Brasil escondeu centenas de abusos sexuais e outros crimes graças a uma rede de proteção que combinava fanatismo, violência, fama e poder.
Link da Globo Play