Impossível perder um documentário como esse, num momento tão convulsionante/convulsionado do mundo. Nós observamos a política radical se aproximar, se insinuar à democracia e entre os apelos antidemocráticos vemos as crianças – hoje idosas – da segunda guerra mundial falando de sua experiência.
A clarividência da direção, que não caiu nas armadilhas simples da auto piedade e fez um trabalho fortíssimo, onde a gente imagina as cenas, mas como as crianças, não nos sobra tempo de ter pena de ninguém porque a situação é de sobrevivência. O uso de animações em momentos cruciais cria um antídoto para a dor das perdas. Há uma permanente construção de grandeza espiritual, alimentada por uma profunda estranheza que eles continuam trazendo nos olhos. Os olhos. Que espécie de adultos nós somos, diante da falta de piedade do dia a dia e de onde aparecem os adultos diferentes, que acolhem meninos fugitivos, abandonados pela guerra? Os pobres? Os exilados, os refugiados, os flagelados da seca, os favelados?
Aporofobia. Temos isso no Brasil. Ninguém quer ser pobre porque ser pobre é herdar indignidade de algum lugar que não se sabe qual é. É ser esquecido e “invisibilizado” pelo sistema. É ser abandonado à própria sorte. Lá no filme, toda a herança indigna ficou para os judeus e suas estrelas amarelas costuradas ao peito. Aqui, nosso céu não tem estrelas amarelas porque é um estado de espírito. Pobres crianças francesas, que deixaram de ser francesas porque eram judias. E esta estranheza incômoda atravessou as vidas de todos e estava ali carimbada nos seus olhos. Os olhos. Prestem muita atenção aos olhos.
A segunda guerra é uma história que não pode acabar porque não pode se repetir. O mundo não precisa de neo nazistas, nem neo fascistas, neo radicais quaisquer, nem neo quase nada que já tenha acabado porque se acabou e não presta, não precisa renascer. O olhar fixo na dor que nunca passou está ali, vocês vão ver. Ele habita o filme, a informação, o dado, a estatística. Ele é um habitante, o personagem principal porque ele dá a dimensão da percepção, da sensação física do sofrimento humano.
Um soldado que trata com crueldade as crianças durante o dia, ao chegar em casa tem um sorriso puro para seu filho? Um político que rouba respiradores ou nem liga para milhares de mortes por COVID e continua se negando a liderar um país, ao chegar em casa beija seus filhos? No fundo dos olhos uma palavra não dita: covardes. Naquela época, na guerra, e aqui na nossa guerra contínua, sem trégua, sem escola, sem saúde, sem esgoto e com a polícia metendo o pau. Aporofobia. Nós. Os judeus. Os nossos olhos históricos. Olhos negros. Olhos judeus. Olhos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Documentário francês de dois episódios sobre o que viveram as crianças durante a segunda guerra mundial. Documentário incrível. Uma edição primorosa, com contribuições de animação, com silêncios, com respeito pelo tema.
Várias histórias de vida, várias situações e caminhos completamente diferentes. Todas de profundo sofrimento, de extrema dor, de marcas eternas. É tão inacreditável a realidade, é tão inacreditável o que podemos fazer uns aos outros. Em momentos de guerra, pandemia, ainda é mais inacreditável porque aprendemos que nestes momentos devemos ser ainda mais unidos e colaboradores. Mas parece que não somos. Porque não somos? Porque esses momentos mostram o pior de muitos de nós?
Vemos fotos e imagens de quando eram crianças inocentes e felizes, das suas famílias, da sua vida entre 1939 e 1945. Depois, ouvir em 2017, essas crianças sobreviventes do horror – do Holocausto. Pessoas com mais de 80 anos, intransponíveis sobreviventes. Olhar seus olhos tristes, mas de uma tristeza funda, silenciosa, crua. Guardam muitos segredos, sofreram muito para além do inimaginável, quebraram limites do equilíbrio e sanidade mental. Te olham através do écran, de uma forma tão funda como se desejassem te avisar do que te pode também acontecer. Porque eles aprenderam, que do nada, tudo muda totalmente e imprevisivelmente. Estamos aprendendo agora, um pouco isso, mas recusamos ver. Lidamos com um vírus como se ele fosse uma questão política. Convidamos os amigos e familiares às escondidas para um almoço, um jantar, uma festinha. Ninguém vai saber. Depois ainda temos o problema de ver este documentário e sentir calafrios. Calafrios e medo. De as palavras não condizerem com as ações e as ações é que marcam, mexem, mudam, impactam. De que tudo muda de repente. De que nada é garantido.
Ana Santos, professora, jornalista
Link do Canal Curta - A Guerra das Crianças
https://canalcurta.tv.br/series/serie.aspx?serieId=562
Diretor: Julien Johan, Michèle Durren
Sinopse: Durante anos, as experiências e as histórias daqueles que passaram a infância nos tempos da guerra foram silenciadas. Longe de serem poupadas pelos conflitos brutais, crianças foram jogadas no caos dos tempos mais sombrios e sinistros da História Mundial. Esse documentário reconta a história de uma geração única de crianças que tinham 10 anos em 1940, e que cresceram no epicentro do tenebroso cenário da Segunda Guerra Mundial.