A primeira notícia realmente maravilhosa é que o filme não tem “mulher gostosa”, nus, sexo e violência. Primeira de muitas outras porque as interpretações são limpas, delicadas, sem nenhum toque over, as crianças são realmente fofas, carinhosas de verdade umas com as outras – e uma criança fazendo carinho é aquele negócio que sobe em cima de você, te escala e te faz de almofada – e tudo isso estava lá. É algo como transplante de cabelo: ou o médico pega a “nossa desordem de inserção capilar” ou é inimitável.
Outra menção necessária é a presença cênica delicada de Eliane Giardini. Pelo menos uma dezena de vezes, apenas por estar ali, eu me peguei só olhando pra ela, como se as outras pessoas fossem evaporando. Uma atriz assim não tem espaço num filme com sexo, tiros e sangue pra todo lado, mas a mudança de enredo faz nossas divas – yes, nós as temos! – brilharem.
Uma história necessária de se contar pra uma geração que fala de ditadura, tortura e democracia, sem imaginar que alguém sofre, alguém morre, alguém some. E que isso era comum no Brasil, na América do Sul, continua sendo assim na Rússia, na China, em uma das Coréias. E é isso mesmo: só existe um tipo de ditadura – a errada - tanto faz se ela é de direita ou esquerda.
Por isso mesmo fiquei com pena de o filme não mostrar um pouquinho mais da nossa história, aproveitando que todo mundo estava mergulhado no viés de mudança, de perda, de falta de informação da família, na tela. Certamente isso daria um empurrão na ação – que poderia ser verbal mesmo, só pra agitar mais um pouquinho a curiosidade dos mais novos. Pra o Google ser acionado pela curiosidade e mostrasse o que a minha geração sabe de cor. Pra gente iniciar uma fala familiar sobre a importância da democracia, sem parecer sermão ou discurso partidário.
Claro que as mudanças que a educação do Brasil está sofrendo, devem impedir que esse filme abra as aulas de história quando o tema for “1964, o ano que não acabou”, mas ele deveria estar na escola, fazer parte do que as pessoas precisam entender sobre perda pra deixarem de ser nocivas umas com as outras. Porque quando o assunto é ditadura, só existem mortos, traumatizados e os que não sabem nada e dão palpite.
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
Os filmes brasileiros têm um encanto próprio. Deslembro tem uma lentidão que nos faz sentir mais as emoções. Muitas vezes nos vemos dentro do próprio filme. Uma adolescente lidando com o mundo das recordações traumáticas, com mudanças de vida e de cultura, com alterações em si e no seu mundo a todo o momento. Em 1979, num mundo sem celular/telemóvel.
Vemos como a história de uma pessoa da família é a história de todas. Cada um sente e vive de uma forma, mas é uma história que pertence a todos. E os mais novos vêm, percebem e sentem tudo.
A ditadura em Portugal, foi horrível e deixou marcas para sempre. Sempre quis saber a história da ditadura do meu país porque é também a minha história. É muito importante sabermos a história do nosso país para sabermos de nós. Sabia o mínimo da ditadura do Brasil. Agora não sei tudo, infelizmente. Mas a cada momento que aumento a minha informação, aumenta meu espanto e horror pelo que um ser humano pode fazer a outro ser humano. Neste filme, é apontada a direção das recordações e da dor. Do efeito que tem não saber o que aconteceu, como aconteceu, onde foi que aconteceu. Isso deixa a imaginação solta. Um perigo.
Gostei muito do filme. Mostra, em 1979, como a liberdade de espaço e movimento era maior no Rio de Janeiro do que em Paris. Agora acho que temos todos outra noção. Atores maravilhosos, mesmo os mais novos. Os livros, a leitura, a poesia, vivendo o seu reinado...que foge velozmente. E, como portuguesa, um grande orgulho por Fernando Pessoa estar no filme e na vida dos brasileiros. Com o nome do filme, o poema lindo “Deslembro incertamente. Meu passado”.
O Bug Latino, agradece a cortesia dos ingressos para a pré-estreia do filme. Muito gratas.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8900098/
Site Circuito Saladearte
Site Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha