Quando se ouve: “é só não ir ao banheiro fazer o número 2 todo dia. Basta um dia sim, outro não e o meio ambiente vai ser protegido”, ou: no Brasil não há pobres” é que você cai em si e percebe que a ideia de violência extrema do Coringa é realista. Todos sabemos e hipocritamente evitamos falar do assunto: Os sistemas de apoio são furados como um queijo suíço. Quem escapole pelos buracos cai onde? Pode cair até que ponto? Quem diz que não precisa fazer parte de um sistema, tenha certeza: é um dos protegidos.
Olhe ao redor – onde estão os nossos Coringas?
O que dá medo no filme é o fato indiscutível de que ser chutado pelo sistema como se faz calmamente no mundo, hoje, cria pessoas que sabem que são invisíveis, que querem alguém que esteja ali por um momento apenas – e que lhe tenha um olhar real, uma preocupação real. Um coração cabe na burocracia dos sistemas?
O nível de crueldade machuca porque nós vemos os invisíveis e fingimos que não são parte de nada – parte dos refugiados do mundo fica à deriva, por aí. Parte dos pobres não tem atendimento nenhum, não tem certidão de nascimento, não existem, ao mesmo tempo em que veem o pisca-pisca das marcas chamando, chamando, pelas ruas das cidades. “Com-pre, com-pre”...
“Ah, mas o problema foi de produção! (foi de não aceitação, colaboração inexistente, ausência de trabalho em equipe, não vê?) “Ah, mas sem esse carimbo, não é possível dar entrada...” (mas minha vida não pode estar atrelada num maldito carimbo que ninguém sabe onde conseguir!). “Minha filha, ta reclamando do que, se o doutor nem veio hoje!” (mas os desgraçados não ganham para estarem presentes nos lugares de atendimento?). “Eu sei que o prazo para dar entrada é de 3 anos, mas quem sabe vocês esperam mais um pouco”? (qual o motivo de existirem malditos prazos legais se o burocrata não acha que deve cumpri-los?)
Quantas vezes você se viu arremessada da chance de fazer parte? Poucas? Nenhuma? Então olhe-se bem porque você também é hipócrita. Eu ouço quando as pessoas falam sobre a moral, os bons costumes, a família – qual a dimensão da parcela que não esteve, não foi criada, não teve acesso a nada disso?
Isso é o Coringa.
O nível extremo de violência do filme é que, sendo ficção, poderia ser documentário. E a hipocrisia social choca cada vez mais: “prendam e deixem apodrecer na cadeia, bandido bom é bandido morto, bang, bang, bang”! Quando, olhando para o Coringa, nós finalmente vamos ter vergonha de que abandonamos propositadamente uma parcela cada vez maior de pessoas?
Medo? Mais dos governos do que dos atores envolvidos.
Um filme sociológico, nocivo, tóxico, incômodo. Necessário. Esqueçam se é obra prima ou não. Esqueçam todas as discussões. Guardem: necessário. Doloroso, mas necessário.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme que terá muitas interpretações, muitos pontos de vista. Aqui vai o meu.
Mais uma versão da história de ficção da cidade de Gotham, perigosa e com vilões como o Joker ou Coringa (no Brasil) e os bonzinhos (como o Batman). Se ficarmos na ficção, é ficção. Um filme cheio de metáforas e de engrenagens e raciocínios sobre o bem e o mal, mostrando e se inclinando, como os filmes quase todos de ficção da contemporaneidade, para a versão de que os maus são os “melhores”, os vencedores, os eleitos, os..., os... Olho para a presidência de alguns países no mundo e parece existir alguma coincidência. Infelizmente. Quem viu o filme “Malévola”, com Angelina Jolie, percebe que a “má” tinha “razões” para ser má e no final se tornou boa. Mas aí o filme era para crianças. Joker não é...mesmo! Tem momentos de violência semelhantes a Tarantino.
O mundo está muito difícil para uma percentagem enorme da população mundial. Realizadores e diretores multimilionários americanos fazendo filmes com violência explícita, com personagens ovacionadas e admiradas por se tornarem violentas depois de terem sofrido traumas, violência, fome, miséria, etc. Território muito perigoso nos tempos de hoje. Pessoalmente e profissionalmente desejo que o talento criativo destes mágicos do cinema americano possa se inverter e se tornar mais construtivo. O mundo precisa.
Trilha sonora incrível. Joaquim Phoenix é sensacional. Os personagens que escolhe são sempre difíceis e devem ser muito desafiadores para ele. Neste personagem de novo está totalmente imprevisível. Seu irmão iria bater palmas de pé. Robert de Niro, sempre fantástico mas com uns dentes novos que o desumanizam. Que mania das pessoas ricas da atualidade de mudarem os dentes. Elas não sabem que mudam tudo quando mudam os dentes? Zazie Beetz, uma surpresa. Linda, charmosa, aparece pouco mas APARECE.
Amei. E, já que estou a falar de dentes, tem um sorriso lindo e um dente da frente com uma cor diferente que lhe dá um charme...Por favor nunca coloque dentes no mesmo lugar de De Niro. Please.
Os lugares onde o filme foi filmado são incríveis. Quem vive, trabalha ou já esteve em cidades com população numerosa, com zonas com estações de Metrô ou de trem/comboio de risco, com ambientes densos em termos populacionais nas ruas, com esquinas inseguras, em casas, prédios e apartamentos degradados, com vidas tentando se equilibrar no dia a dia. Com famílias desestruturadas, pobres, com pessoas com doenças mentais, com DST (doenças sexualmente transmissíveis), desempregadas, sem qualificações, etc, etc, etc, entende que o filme mostra na verdade uma realidade do mundo que os ricos e privilegiados nunca sonharam nem sonham. Esse mundo já existe há muitos anos, décadas. E se todos esses seres humanos decidissem “se vingar”? É bom que vejamos este filme enquanto uma mensagem de ficção mas sabendo que à nossa volta muitas pessoas sofrem, tão demasiadamente e tão injustamente que realmente precisamos urgentemente mudar muitas coisas.
Esta semana, o jogador de futebol Mane mostrou o que os demasiado ricos podem fazer com o seu dinheiro, sem ser comprar carros, casas, joias, aviões e helicópteros. Um ser humano que sabe o que pode valer para a vida de muitas pessoas 70 euros, por exemplo. Vamos parar de perseguir os lugares onde teremos a casa mais rica, a maior, a mais valiosa? Vamos entender que quando sofremos, a saída não é a vingança, a violência, o crime? Eu sou uma pessoa bem comum, mas como todos já tive algumas situações em que as pessoas talvez merecessem uma vingança sobre o que me fizeram. Na ficção mereciam. Ai mereciam... Mas eu fico quieta observando os “pavões” se estatelarem no chão...por que um dia isso vai acontecer na vida deles e delas. Vai acontecer. A vida nisso é especialista. Eu não vou mergulhar em sentimentos agressivos, de inveja, ódio, rancor, etc. Muito menos virar criminosa por causa do que as pessoas, que nada valem, me fizeram ou fazem ou farão.
Quem trabalha em educação, saúde, justiça pelo mundo, sabe muito bem que as pessoas e sua vida é tudo menos cor de rosa. Exceção para os privilegiados, ricos, milionários. Agora, quem decide trabalhar nestas áreas tem de se dedicar e tem de humanizar a máquina, o sistema. Não pode virar uma máquina que nada sente e nada ajuda. Não pode. Se não consegue, vá fazer outra coisa, ser mais útil noutro lugar.
As doenças mentais precisam urgentemente de ser olhadas de frente, aceites e cuidadas por uma sociedade que olha para o lado e que faz de conta. Não dá para fazer isso mais com a quantidade de pessoas que se suicida, que comete atos de violência familiar, atos de violência “gratuita”, que, que, que....
Vamos continuar a olhar para filmes como estes e a falar dos roteiros ou vamos fazer algo mais edificante? Em 2030 o planeta Terra pode não ter “volta”. E os seres humanos?
Quando eles vão acordar? A tecnologia tem vantagens. Vamos usar essa vantagens apenas e deixar as degradações para o passado?
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt7286456/
Circuito Saladearte