
Quanto de hipocrisia você vê num mundo que salva baleias e pinguins para encher o mar de plástico que os matam depois? Ou de falar de valores humanos, tropeçando nos refugiados que se amontoam e afogam por aí? O filme tem essa dose de irritação constante, uma dose permanente de preconceito contra povos: o brasileiro é tão limítrofe que a gente vai perdendo a paciência com a visão que os franceses podem ter de nós, se aquilo for mesmo verdade.
Sem hipocrisia vemos pessoas falando “aquela gentinha” ou “aquele neguinho” vezes demais em todos os lugares do mundo, mesmo em Salvador da Bahia – 80% negra ou mestiça - mas intolerante em igual modo e medida (se não for pior que a Europa em termos de ética de convivência).
A montagem, a desorganização, o barulho, dão a dimensão exata do horror que o primeiro mundo sente por nós, do terceiro. Os “em desenvolvimento”... Os estereótipos são inúmeros. Vendo o filme assim, com a filha que faz da solidariedade um padrão irritante e “os refugiados tropeçando nos valores civilizados” seria normal imaginar que o filme é horrível. Grande erro: o filme é muito bom, tem lições a ensinar sobre convivência, gratidão/ingratidão, tolerância /intolerância, competição, preconceito, discriminação e muitas outras tantas “humanidades”.
Muito tempo afinal deve ter sido gasto para reconstruir a falta de estrutura e depois que a armadilha estava armada e a irritação incontida, vir a gratidão verdadeira ocupar seu lugar na cena e derrubar nossos sentimentos, nos levar às lágrimas. Um plano mirabolante para que a montagem do filme, a forma como ele foi imaginado nos envolva da forma como somos envolvidos.
Incrível, imperdível. Quem não for ver, vai perder, com certeza.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV
O mundo está cheio de ideias pré-concebidas e baseadas no que ouvimos, lemos e achamos. Veja este filme para ver o tanto que fazemos de errado a todo o instante. Seguimos essas informações soltas e sociais e construímos imagens e ideias de coisas, de países, de pessoas e de culturas. Queremos ser tratados como diferentes e únicos, por que o somos, porque não fazemos isso com os outros?
Especialistas explicam que o cérebro precisa de lidar com muita informação ao mesmo tempo e por isso, categoriza as informações. É brasileiro? Então é assim e assado. Português? Ui, esse então só lembra piadas ou a história pesada que tem. Mulher bonita de um país de leste, já sei o que faz. Etc, etc, etc. Mas se essa reação inicial do cérebro não é tão controlável, na categorização nos lóbulos temporais, quando essa informação chega rapidamente ao córtex médio frontal, aí podemos interpretar e sentir empatia. Ser mais justo. Na verdade, uns segundos depois de reagirmos internamente da forma aprendida socialmente, podemos aceitar ou mudar essa opinião, nossa escolha. E, o mais importante, podemos e devemos ter comportamentos que coloquem todos como iguais, como irmãos, como amigos, leais, respeitadores.
Como desvirtuamos tudo? Como é possível? O mundo mediático/midiático, dá importância ao que vende. E o que vende é o ser humano que mata pessoas? Dinamizar uma ação humanitária, humana ou social, não consegue facilmente segundos na televisão, mas uma pessoa que rouba, mata, tem “prime time”. Não entendem que estão a promover os comportamentos errados, perigosos? Que isso se vai voltar contra vocês? Que está se voltando contra todos? Quem tem comportamentos de colaboração é tratado como inocente e “lorpa”. Mas o que consegue fazer suas “cenas”, seus negócios e “se dar bem”, é o cara! Poupem-me. Tudo isto por dinheiro? Para quê? Para gastar em saúde? Para gastar em aulas de meditação, viagens ao oriente, maratonas, um corpo diferente? Porque está na moda?
As pessoas boas são boas, não são de nenhum país em especial. Existem pelo mundo todo e encontram-se quando menos esperamos. As más também estão por todo o lado. Conheço portugueses maravilhosos e outros horríveis. Como conheço chineses, japoneses, brasileiros, italianos, etc. As pessoas não são a sua cultura, são o que decidem ser.
Pessoas voluntárias podem parecer bizarras num mundo frio e egoísta. Podem ser exploradas. Mas o que elas deixam atrás de si são flores, sementes, futuros. Amor e carinho, mesmo que às vezes seja mostrado de forma muito tosca.
Tem momentos do filme que você não sabe se faz como todo o mundo e ri, por que são piadas sociais, ou se chora por que é cruel o que pensamos e provocamos nos outros quando seguimos os preconceitos.
Mais um filme que deveria ser motivo de debate, em qualquer escola, faculdade, o que quiserem. Mas motivo de debate e de construção.
Ana Santos, professora, jornalista
Site de informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt9016296/
Circuito Saladearte