A primeira coisa que o Bug gosta de ver, quando escolhemos um filme, é que ele é baseado em fatos reais – a vida costuma superar a nossa capacidade criativa numa ficção, mas não costumamos acreditar nisso. Os outros pegam AIDS, nunca quem transa sem camisinha, já repararam? Pois é, ATRAVÉS DO FOGO nasce de fatos reais.
Temos essa tendência em achar que a roda do mundo deve girar diferente pra nós. Vem o Corona vírus e prova que o Universo nem pensa em nós individualmente, mas tudo bem – a humanidade vai pensar de novo que a roda deve girar diferente pra cada ser humano... isso de nos ver com igualdade é um longo aprendizado a ser feito, creio.
No filme, há um bombeiro, com uma vida de bombeiro, força física, preparo, agilidade, postura, disciplina – tudo como a gente imagina ser a vida de um bombeiro. Aí vem um incêndio...
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E tudo o que era rápido passa a ser contado de outra forma. E como o diretor foi competente em mudar o ritmo do filme! A dinâmica baseada na dor, nos envolve fortemente e ficamos ali, à mercê do filme, do tempo, da ação de sofrer baseada na inação, espera, 24 cirurgias, espera, terapias, dor, depressão, dor, crise familiar, dor. Ver uma metodologia para a sua superação ali colocada e um ator diante da descrição de um longo processo que precisa mesmo parecer longo ao espectador. Um lindo filme, com um roteiro realista, uma direção objetiva e atores minimalistas e maravilhosos. Nada de caras, bocas, olhares e grandes gestos. Quando alguma coisa acontece, ela ganha enorme visibilidade.
Como está baseado em fatos reais, o coração fica um pouco mais doce com o desfecho e com a nossa capacidade de reconstrução. Isso também vai acontecer quando as coisas com o Corona vírus acalmarem e a gente puder voltar a sair, a conviver. A doença não convive. Nem a nossa, nem a do bombeiro que luta com a dor e a vence. Estamos também nós no período da dor, vendo as perdas se acumularem – como uma coisa infinitamente menor e mais atrasada do que pó pode estar nos ensinando a revalorizar a forma como devemos viver? Houve uma força, portanto, ao redor da luta de um bombeiro francês que procurou se ver como uma pessoa nova, diferente da antiga diante de sua mulher, filhas, mãe, amigos – diante dele e diante da própria vida. Dói ver cada passo da mudança, no filme, assim como dói ligar a TV e contar as nossas perdas, a nossa fragilidade, a nossa estupidez. Dói estar diante da vida, cada vez que ela se move. Mas no caso de ATRAVÉS DO FOGO, vale ver como nossa nobreza, quando a permitimos, vence qualquer obstáculo.
Imperdível. Vale depois sentar com a família, já que todos estamos em casa, no mundo, e falar sobre ela - a nobreza - diante da dor que nos consome mais – como agora, ou menos – como sempre.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme que usa parte dos seus lucros para ajudar no trabalho dos bombeiros. Super louvável. Um grande exemplo. Retrata muito bem a vida dos bombeiros profissionais. Os dias de rotina e ócio em que nada acontece mas que servem para se prepararem e os dias, ou momentos, em que de repente têm “trabalho”. E em que o seu trabalho é sempre algo difícil, traumatizante e de enorme risco.
Muitas crianças crescem com o desejo de serem bombeiros. Serem pessoas que salvam o mundo, a quem podemos recorrer em momentos desesperadores, que parecem ser de ferro e indestrutíveis. Que se entregam a salvar os outros. Mas, além disso, esquecemos o outro lado. Todo o horror que vêm e que vivem. As cicatrizes, mazelas e traumas que acumulam durante a sua carreira. O medo que devem sentir e que aprendem a calar para não parecerem menores nem incapazes.
Excelentes atores, excelente roteiro e direção. Baseado em fatos reais de pessoas que perderam a identidade física após acidentes.
Fala de um bombeiro dedicado e que ama o que faz. Que ama sua família e que se dedica a viver e a cuidar do que tem. E, que subitamente é ele quem precisa de ajuda e quem perde tudo o que construiu até aquele momento. Mesmo fisicamente. Nos mostra como é tão rápido termos tanto e perdermos tudo. Como demora eternidades tentar recuperar o que éramos, o que tínhamos. Como muita coisa nunca mais se recupera. Como é difícil aceitar que tudo o que construímos, terminou. Que as escolhas que fizemos na nossa vida nem sempre são para sempre.
Por vezes nós decidimos mudar totalmente. Muito difícil. Mas muitas vezes é a própria vida que muda a nossa vida totalmente. Dizendo claramente que não mais o caminho é por ali. Que você tem de escolher outro. E o mais difícil é aceitar isso. Insistimos porque não entendemos a mensagem e não queremos. Nascemos para fazer aquilo, como mudar? Demora, mas, quando aceitamos, quando aceitamos, a vida volta a fluir, volta a ser bela. E nós voltamos a ser nós. Mudados, diferentes, mais experientes, mais magoados, mas seremos sempre nós. Principalmente a valorizarmos mais o que somos e o que temos. Não o que temos de coisas materiais, mas o que temos emocionalmente. O que realmente interessa, as pessoas que amamos realmente e os que realmente nos amam e desejam viver conosco e partilhar o nosso caminho. E dar mais valor a tudo o que precisa ter valor: preparar a nossa própria alimentação, cuidar do lugar onde vivemos, cuidar e aprender com os outros, escolher funções na vida que sejam construtivas e boas para todos. Muito importante a referência à padronização social da importância da imagem corporal. Você é bonito, musculado, logo você é boa pessoa. Você é feio, com barriguinha, tem a pele queimada por salvar outras pessoas, logo você é descuidado e menor pessoa. No filme a dificuldade social de lidar com pessoas que ficam com marcas visíveis no seu corpo e conotadas como “feias”. Mas temos esta categorização social constante de outras formas: quem não tem as medidas e a aparência de manequim de vitrine, é menor. E afinal, é exatamente o contrário. Cuidar de si mas manter as suas “feiuras” que são tão charmosas e únicas porque a beleza é interior. Precisamos voltar a cuidar a beleza interior. Somos belos por dentro. Devemos cuidar essa beleza. É ela que vai valer sempre. Já conheci muitas pessoas belas fisicamente mas que interiormente são venenos que nos momentos de escuridão te asfixiam em vez de te iluminarem. Viver é também aprender a não confundir o que é verdadeiro nas pessoas. O filme também fala de algo muito preocupante. Aprendemos socialmente a mudar de caminho quando algo sai errado ou não acontece como desejamos. Algo ou alguém cria dificuldades ou não obtemos o sucesso que desejamos, mudamos de novo. Isso cada vez é mais presente: apagamos “pessoas”, mensagens, relações, caminhos, nas redes sociais. Fugimos, silenciamos, divorciamos, separamos, etc. Aprendemos a resolver os problemas dessa forma. O filme nos lembra que resolver os problemas pessoais e físicos não se faz assim. Não dá para fugir. É aceitar, enfrentar, ir em frente, não desistir, nunca pensar que é o fim seja do que for. O amor e a amizade são a salvação nessas horas porque nos dão um caminho, um futuro, uma vontade de continuar. Desistir de nós não é opção. Nunca.
Não menos importante fala dos cuidadores: médicos, enfermeiros, assistentes hospitalares, etc. Todos os que se dedicam a cuidar dos outros. Pessoas que mais parecem anjos. E, nesta hora, salvam o mundo. Não existem palavras para agradecer o que fazem. Mas a gratidão será eterna. Já era para quem já esteve num hospital ou teve família ou amigos num hospital noutras épocas. Mas agora, neste momento, grande gratidão e desejo de muita coragem. Realmente precisamos de vocês muito.
Depois de ver um filme que aborda questões tão importantes da vida, num momento tão único e difícil de pandemia, quem sabe aceitamos reciclar a nossa forma de viver?
Gostaríamos imenso de ter visto o filme numa sala de cinema. E as salas do Circuito de Cinema Saladearte e as salas do Espaço Itaú de cinema – Glauber Rocha, em Salvador, são maravilhosas. Mas fica para depois. Agora, ficamos em casa. Porque queremos ajudar.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt7210426/
Diretor: Frédéric Tellier
Roteiristas: David Oelhoffen, David Oelhoffen
Elenco: Pierre Niney, Anaïs Demoustier, Vincent Rottiers
Sinopse: Durante uma intervenção em um incêndio, o bombeiro Franck se sacrifica para salvar seus homens. Ao acordar em um centro de tratamento, ele percebe que seu rosto se derreteu nas chamas e agora precisa reaprender a viver, e também aceitar ser salvo.
Circuito de Cinema Saladearte
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha
https://www.itaucinemas.com.br
Telecine (atualmente gratuito)