
Um Japão de terceiro mundo. Favelas e favelados levando vidas miseráveis, cometendo pequenos crimes a torto e a direito, vivendo na mais absoluta marginalidade. Mas com carinho, cuidado, senso comum e a capacidade de prever a existência dos outros o tempo inteiro. Tipo quando a gente é parte de uma família? É. Tipo família, sim.
Incrível pra gente ter que admitir que aquele tipo de Japão existe e que todo o dinheiro que banca a altíssima tecnologia japonesa poderia criar uma forma do sistema social funcionar de um jeito menos idiota, distante e incompreensível. Vi ali muito mais a gente, aqui no Brasil, do que propriamente o Japão - como é possível que um sistema do governo entre na vida de qualquer alguém no mundo só pra piorar a vida de todos? Só pra tornar as pessoas infelizes, sozinhas - e ainda por cima achando que ali havia uma grande coisa sendo feita, com direito a cobertura de mídia e tudo?
Claro - eles estavam totalmente errados em roubar. Pior: estavam ensinando as crianças a roubarem. Mas... onde antes havia harmonia e alegria, depois só havia solidão. pra qualquer lado que se olhasse - solidão. Há alguma coisa quebrada na nossa vida social que precisa ser revista com urgência e o filme aponta o tempo inteiro para o nonsense emocional que vem se tornando o convívio humano. De uma maneira escandalosamente natural, os japoneses cada vez mais apontam para a inutilidade dos vernizes sociais, pra inutilidade de ter, sem que sejamos alguma coisa, antes. E que ser é uma construção, independentemente de sermos perfeitos ou totalmente culpados, culpabilizados, incapacitados - ser é uma condição intrínseca estranha, que teima e aparecer sob condições inimagináveis.
Assunto de família coloca sob lentes de julgamento prático e funcional quais são as qualidades principais de uma família, pra que se possa olhar a vida com alguma alegria de estar aqui, afinal. E pela escuridão do filme, pela bagunça, você olha para o sistema e pensa que aquilo não é segurança. Mas - sempre tem um mas - quando a gente vê a alternativa da segurança, da limpeza, logo olha a bagunça com uma estranha simpatia. Com um sentimento de utopia, onde melhor tudo bagunçado, do que a falta absoluta de amor entre as pessoas.
Vá ver o filme. É, no mínimo, conflitante - intimamente falando. E nem vem com o papo de que é ficção - a vida real faz coisas bem mais inimagináveis. Vale viver o conflito dessas sensações e depois sair pra falar do assunto e esvaziar um pouco desse mal estar em se ser humano.
Ana Ribeiro, diretora de TV, cinema e teatro
Sabe quando você só vê coisa errada? Pois é. E toda essa coisa errada parece mais certa do que tudo o que é certo? Não ache estranho. Veja o filme. Que lição de vida. Espalha questionamentos, dúvidas. Os filmes estão cada vez mais a ocupar o seu lugar mais nobre. De nos confrontar com o que somos, com o que queremos, com o que podemos a cada instante. Mesmo com a dificuldade em manter verdadeiras salas de cinema concorrendo com máquinas gigantes, o cinema sobrevive. E sobreviverá porque sem ele nada seremos.
O amor nos pega de surpresa. O amor nos dá as respostas possíveis, não as respostas perfeitas. Não o que desejamos, não o que queremos. Mas o que é possível. E talvez por isso nos salve por que com ele aprendemos que não é possível tudo, mas o intenso e o importante. Nos molda. Em Portugal temos pelo menos dois provérbios de que me lembro agora: “Não se cospe para o ar” e “Nunca digas, dessa água não beberei.”
Pessoas em dificuldade constante e sem saídas ou sem aprender habilidades adequadas socialmente, fazem frequentemente coisas inimagináveis. E essas coisas provocam danos profundos. São as saídas que encontram, as que são capazes de encontrar. Elas consideram que estão a fazer o melhor delas. E estão. Isso é muito perturbador porque a percentagem de pessoas no mundo atual que estão nessa situação é muito elevada.
As escolas precisam de ter um espaço obrigatório de cinema para os alunos, seguido de debate, conversa. Precisamos de nos ver nos filmes que contam histórias de outros. E precisamos de falar sobre isso e sobre o que isso faz dentro de nós. Para que não nos afastemos cada vez mais e mais uns dos outros.
Precisamos de assegurar que o mínimo de informação chegue a todas as pessoas, para que elas saibam ser felizes, cuidem da sua saúde, mantenham a sua sanidade mental e bem estar, tenham o mínimo para comer e água. Como é possível termos chegado a este ponto?
Ana Santos, professora e jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt8075192/
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