
Vai entrar para a história do cinema brasileiro, com certeza. Sem ser careta, eu enjoei do modelito nacional “mulher pelada, sexo, porrada e tiro” e, nesse sentido, AINDA ESTOU AQUI mostra um momento brasileiro de extrema violência, como o da ditadura - que, acreditem, EXISTIU E NÓS A VIVEMOS – sem mostrar nenhum gesto agressivo. Essa sutileza, a forma como Walter Salles cria o ambiente da ditadura fechando as cortinas da casa, as metáforas maravilhosas, que relacionaram praia, alegria, algazarra, família, sorriso e liberdade, com escuridão, silêncio, aspereza, ditadura, perseguição e censura, criam um tom explosivo pra nossa perda política, na época dos generais. A foto do carrasco Médici era autoexplicativa – sem comentário, sem identificação – porque todos sabíamos quem era ele, o Brasil “ame-o ou deixe-o”, o medo, a opção que todos os pais pediam que fizéssemos pela ignorância política e que tanto explica a nossa falta de interesse por ela, hoje em dia. Olha o que uma foto bem colocada faz... portanto, o filme tem detalhes irretocáveis.
O roteiro é aliciante – pelo menos pra quem fez parte dele, historicamente. Você se vê totalmente envolvida por recordações – no caso, tive todas as visões porque nasci e cresci no Rio, minha praia era em Ipanema, frequentava o Pier, surfava no Arpoador. Nos remeter às cores das filmadoras, aos defeitos da imagem, à falta de estabilização – tudo perfeito e genial porque você vai sendo colocado na cápsula da sua própria imaginação.
A interpretação minimalista de Fernanda Torres a coloca ao lado dos grandes monstros da arte. Seria muito mais fácil ela sair berrando no interrogatório da polícia do exército ou arregalar os olhos de pânico ao olhar os inspetores/torturadores, mas a delicadeza da opção pelas perguntas repetitivas – tanto quanto as que foram feitas a ela com aspereza, quase grossura, foi secando os nossos olhos. O filme não é de chorar. Eu mesma só chorei lá no final, quando as fotos históricas da família Paiva apareceram na tela. Também achei isso proposital – as ditaduras nos secam por dentro mesmo. O general Figueiredo, antes de “ganhar a tal eleição indireta”, disse calmamente que preferia o “cheirinho dos cavalos ao do povo brasileiro”, por exemplo. Isso é história. Isso eu vivi pra contar. Muitos viveram. E incrível: depois de dizer uma barbaridade dessas, ele “ganhou a eleição”(!).
Passamos por uma tentativa de golpe, em 8 de janeiro, que foi e vai ser lembrada para sempre no Brasil, que entrou para a história e que vencemos ao nos mantermos democratas – data mais festiva impossível, diante da premiação de Fernanda, num filme com este tema, esse nível de sensibilidade, de denúncia, de história. Porque foi com essa polícia miserável, que a nossa polícia militar aprendeu a bater primeiro, matar primeiro e descartar os corpos depois. Foi com essa polícia desprezível, que a polícia brasileira aprendeu a “julgar por parâmetros estranhos” – ser pobre, ser preto = suspeito; ser rico = respeitável. E a jogarem suas frustrações, taras, preconceitos sobre o seu próprio grupo de trabalho, como se fosse um manto de silêncio que deve encobrir a todos os que fazem parte de corporações.
AINDA ESTOU AQUI não é um filme, é uma esperança de verdade, num momento em que o Brasil ainda amarga mentiras ditas no governo passado sobre a "pouca" riqueza cultural do nosso povo. Não somos os bárbaros que torturam; “somos o lábaro que ostentamos e que é estrelado, senhores.
Somos estrelas. Somos o Brasil.
Parabéns pelo filme. Deve ser visto em qualquer momento da nossa história, para que esse tipo história nunca mais se repita. E em tempo: DITADURA NUNCA MAIS.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Que enorme privilegio poder assistir a este filme entre baianos. Um filme tão importante, extremamente tenso, numa sala esgotada, onde não se ouvia um pio. No final alguém gritar “sem anistia jamais” e todos gritarem de imediato com umas palmas menos sonoras. Uma corrida às salas de cinema, a gente até aceita ver o filme na primeira fila com direito a dor de pescoço, de costas, os olhos tentando se adaptar às imagens mais movimentadas. Momento histórico que vai com as condições que se pode.
Estava nervosa antes do filme iniciar, fiquei nervosa em alguns momentos. Não se vê nada de impressionante, mas impressiona pelo que sabemos dessa época. Cada barulho, cada olhar, cada cena colocada para nos estimular a imaginação fazem nosso coração disparar e um incómodo cada vez mais intenso cresce e se instala. Como o título da canção de Erasmo Carlos, “É Preciso Dar Um jeito, Meu Amigo”, o filme nos diz a todo o instante que precisamos proteger nossa democracia, nossa liberdade, precisamos estar acordadas e bem acordadas. Ver a dignidade e a coragem de Eunice nos assombra em cada segundo. Construir uma vida, reconstruir tudo de novo uma e outra vez, com a mesma dignidade com que sorri para as fotos que lhes pediam para colocarem caras tristes e sérias, nos estimula a seguir e lutar pelo que se acredita. Obrigada Eunice. Mesmo, mesmo.
Obrigada a Walter Salles por ter feito este filme. Um filme lindo, com um roteiro que te prende à cadeira. Está lá tudo: os anos 70 em todo o seu esplendor, as relações familiares e de amizade construídas ainda sem o “perigoso” celular, a cor do filme lembrando sépia, os movimentos da câmera lembrando as câmeras pessoais e familiares. Todos os atores estão espetaculares. Todos talentosos, lindos. Os planos muito marcados nas emoções e expressões faciais, próximos – isso foi sensacional. E aí, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, sua filha, mostraram que fazem parte de um grupo de atrizes mundiais muito restrito, capazes de dominar sua face de uma forma impressionante. Fernanda Montenegro aparece pouco tempo, mas mostra muito em pouco tempo. A cara de uma pessoa afetada pela doença de Alzheimer não é nada fácil e ela está espetacular.
Fernanda Torres, venceu o prêmio de melhor atriz de drama, em 2025, nos Globos de Ouro, com esta interpretação. Imaginamos antes de ver o filme que ela deve ter estado muito bem, como ela sempre nos habituou. Mas depois de ver o filme percebemos melhor ainda porque venceu. É um papel de uma vida, ao interpretar Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva. Vemos uma entrega assombrosa em cada detalhe. É realmente uma interpretação que te enche o coração. Era tão bom se ela vencesse também o Óscar...e se o filme vencesse o Óscar...e se Walter Salles vencesse o Óscar. Não é impossível, sabemos que não basta ser bom, mas eu estou na torcida.
Uma trilha sonora maravilhosa. Estou ouvindo ela desde que vi o filme.
Por último, penso no filme a todo o instante, penso no que posso mais fazer para além do que faço para impedir que todo este horror volte. E no que enquanto sociedade, grupo de amigos, familiares podemos contribuir. Divulgar este filme é uma delas. Ditadura nunca mais, Bolsonaro nunca mais. É preciso estar atento e forte como se ouvia em Portugal durante e após a ditadura.
Imperdível, imperdível, imperdível.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Uma mulher casada com um ex-político durante a ditadura militar no Brasil é obrigada a se reinventar e a traçar um novo destino para si e os filhos depois que a vida de sua família é impactada por um ato violento e arbitrário.
Direção: Walter Salles
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello.
Trailer e informações: