UMA FALTA, UMA PRESENÇA
O Cinema do Museu, do Circuito Saladearte, em Salvador da Bahia, reabriu esta semana, finalmente. Nós nos acostumamos, no curso da “pandemia infinita”, a fantasiar reencontros, amigos saudáveis e dias ensolarados, enquanto o Brasil perdia suas pessoas. E perder, aqui, não é metáfora. Estamos perto de setecentas mil, até agora, e a pandemia não acabou. Mas, chegar ao Cinema do Museu abriu a falta que, de casa, sem dúvida, era mais fácil de administrar. Cadê Marcelo Sá?
Ele sabia chegar - com certeza - e era superlativo em tudo: super piadista e também irônico, engraçado, inteligente, implicante, culto, provocativo, espirituoso, afável – tudo isso, quando ele entrava no Museu, balançava até as mangas! Engraçado que a mangueira também secou, pouco antes dele que, como um furacão, simplesmente abandonou o palco. Pra nós era inconcebível saber que a temporada dele havia acabado, quando todos estavam tentando não morrer de covid. Marcelo não morreu de nada referente à pandemia. Apenas, teve as luzes apagadas pelo alto, pelo capricho ao redor da chefia da vida. Quem achava que ele colocaria uma orquestra sinfônica completa ou uma ópera pra sua despedida, percebeu tarde demais que ele simplesmente trocou de sala de exibição e com a independência que sempre foi sua, saiu com as luzes, se apagou com elas.
Ninguém esperava por isso. Apenas... não estávamos esperando por isso.
Ver o Cinema do Museu - o bunker de Susana e Marcelo – só com Susana, foi um choque de realidade. A sala de exibição - reformada e sem ele falando de ideias novas, sempre – tinha a beleza da saudade. Mas nunca o vazio. Marcelo não combinava com espaços vazios e o Museu está cheio dele. Tanto que, ali com Susana, nem consegui pensar que ele não estaria mais. Marcelo estava ausente naquele dia, como se fosse uma coisa pontual. Ele que jamais se permitiu ser invisível, deixou uma saudade concreta, mas que ocupa espaços sólidos, alegres e cheios de planos.
Um espírito pode ocupar espaços artísticos assim. Com uma personalidade como a dele, exuberante, o fato de não o ter concretamente, para tê-lo dançando em cada pequeno lugar do Museu, foi talvez o mais impressionante. Não num momento, não num detalhe, mas uma presença alegre – presença. Ele morreu, mas está vivinho da Silva. E alegre e exuberante, como sempre.
Achei que chegar e não vê-lo me deixaria triste, mas na verdade, ele estava ali o tempo todo. Não é “pegável”, não é mais concreto, mas faz parte de tudo. As pessoas todas, quando chegavam, logo perguntavam: “você viu a homenagem a Marcelo”? – sem nenhuma tristeza, depressão ou perda. Tudo continuava a ser a mesma alegria, o mesmo Marcelo.
Cinema lotado, o clic, clic, das fotos, homenagens, festival, fotos dele. E ele mesmo, ali.
A maior homenagem, portanto, é saber que ele construiu, em vida, uma “cadeira cativa” naquele lugar, que se estendeu mesmo depois da morte - na memória, na fantasia, nos sonhos e no futuro – e isso está lá no Cinema do Museu, dançando pelas escadas, nas luzes discretas do cinema, nos vincos da tela nova, em cada detalhe, em cada cafezinho. Apenas continua ali com Marcelo que, sem alarde, apagou as luzes, saiu na nossa vida e entrou na nossa imaginação, na nossa história, no aumento do nosso amor pela arte.
ANA RIBEIRO
Dois anos. Dois anos sem os sorrisos abertos, sem poder tomar aquele cafezinho, comer aquelas tortas, sem as conversas únicas e, principalmente, 2 anos sem poder assistir aos melhores filmes, na melhor sala de cinema da cidade. E, no meio dessa perda uma perda ainda maior – a partida de Marcelo Sá. Um ser humano que respirava arte, criatividade, humor, cheio de energia até às entranhas. Reuniões difíceis, também tinham direito a Castanha do Pará. Dizia o que pensava e falava dele e do trabalho tranquilamente, assim como fazia perguntas que ninguém fazia. Tive uma conversa de minutos com ele, um dia, que guardarei para sempre porque falou coisas dos nossos trabalhos que eu sempre achei mas tinha dúvidas e nunca tinha conversado com ninguém. E chega Marcelo, na segunda ou terceira vez que nos falamos e “plim”. A homenagem que lhe fizeram é a homenagem que ele vai amar e que tem a cara do Circuito Saladearte, da Suzana Argollo e de todos: carinho, dedicação, amizade, lembrança. A sala do cinema do Museu chama-se a partir de agora Sala Marcelo Sá e está a acontecer um festival de cinema com seus filmes favoritos. Simples, tocante, emocionante. Que bom que é viver numa cidade com pessoas tão lindas, tão especiais. Já sabe que pode voltar, bem como pode voltar para as outras salas. Tudo voltando devagar, bem feito, com equilíbrio. Se nunca foi, talvez seja um bom momento para ir e descobrir um dos lugares mais incríveis da cidade.
ANA SANTOS
Circuito de Cinema Saladearte
http://saladearte.art.br/
Fotos cedidas pelo Circuito Saladearte