O ano mal começou e estou emocionalmente lotada de coisas pras quais não estava mais preparada, acostumada. Não senti raiva de nada – aliás, tem bons dois meses que não sinto raiva... Trocar um presidente mais que implicante - aterrorizante - por uma pessoa normal é silencioso e tranquilo.
Há tiros? Sim, infelizmente e ainda. Uma maioria esmagadora de gênero masculino, hetero, com uma ideia fixa de que ser homem é ser macho feroz, é decidir tudo no tapa, no prendo e arrebento. Mas a foto da Rampa do Planalto dá o tom exato da mudança: machos velhos e inseguros, amantes de Viagra, sendo trocados por pessoas comuns, por brasileiros, como deve ser: mulheres brancas, lésbicas, negras, heteros, indígenas, e também homens cis, gays, crianças e um cachorro. Gente alta, baixa, gorda e magra. Gente. Outra coisa que não dá pra ouvir na foto, mas dá pra sentir é a alegria das risadas. Os abraços e beijos. Voltamos a olhar o Brasil e ver nele pessoas. Que falta me faziam as pessoas...
O que me leva a uma despedida. A de Pelé. Não fiquei triste porque o corpo dele estava vazio de vida. A doença já havia consumido tudo. Alguém disse que Edson se ia, mas que a Pelé, ninguém jamais levaria. E não levará.
Para os que não souberam jamais o que era um mito – Pelé é um mito. É o símbolo de uma meta, um objetivo, é o símbolo de uma entrega e uma inspiração. Pelé entregou tudo, a vida inteira. Não deixou nada pra trás. Mesmo seus erros foram públicos. Muito mais acertos, que erros, muito mais jogadas geniais do que pernas de pau, muito mais bolas dentro, como falar de criança brasileira há 30, 40 anos atrás, do que fora. Pelé construiu a nossa primeira imagem de vitória absoluta. O presidente que correu daqui, a abalou com tudo o que não é aceitável.
Lula é mais que um presidente, neste momento – é o nosso desejo mais profundo de termos de novo um Pelé, um Ayrton Senna quando pensamos o Brasil. É muita responsabilidade, sim. Mas olhem as mãos da Ana Mozer e lá está a força, olhem a Simone Tebet e lá está a menina feliz com uma responsabilidade, olhem pra Marina Silva e vejam uma mulher que alcançou a serenidade que não a impedirá de lutar, olhem para Sonia Guajajara e verão uma esperança, para Anielle Franco e verão uma guerreira pronta para defender o que Marielle morreu defendendo, olhem para Margareth Menezes e verão raízes profundas que ela quer mostrar e aprofundar através da cultura, para Nisia Andrade e verão o desvelo exigido de quem opta pela ciência. Me desculpem os homens, mas mal os vi... Havia tanto tempo que não via tantas mulheres que me despertassem tanto orgulho... e havia Janja, a regente, que não cabia em si. Que como uma formiga, segurava o papel, enxugava o pescoço do seu “boy”, dava as mãos, ria, segurava a cadela, pegava mais água e olhava, olhava, olhava... embevecida... parecia mesmo um sonho ter tanto de uma só vez.
O Bug Latino é um sonho e uma resposta a tantos homens que desaprenderam o valor da palavra, ao trocá-las por fuzis e espancamentos, por mortes e depredações, por gritos e impropérios. Se você tem um filho e ele já não fala com você como antigamente, se você cobra das pessoas coisas e não troca ideias com elas, se as acusa de algo que falta, de um vazio não preenchido e não tenta entender o que acontece ao seu redor antes de cobrar, você conhece a estrutura de um problema de comunicação. Ontem, hoje, nós vimos um homem desprendido que morreu como um ídolo – sem querer incomodar; vimos um sorriso, um olhar diferente, um carinho, uma presença, uma esperança de ajudar. O Brasil é de todos e todos precisamos concretizar a nossa gota de fé e esperança. A minha, se chama Bug Latino e eu quero que contem com ele. Esta civilização, da forma como a entendemos, se comunica, negocia, dialoga – tudo com palavras, muitas palavras. Nosso pensamento é linguístico. De ontem pra hoje eu mal dormi de tantas palavras, esperanças e pessoas maravilhosas. Todas comuns e todas falantes. Ainda bem.
O céu te espera, rei!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Democracia Sempre!” Bug Sociedade
O Brasil vivo e pulsante, o Brasil que todos no mundo sabem que existe, parece finalmente ter espaço para surgir. Depois de 4 anos “para esquecer” é muito emocionante ouvir discursos, gestos, comportamentos, de pessoas normais, saudáveis, agregadoras. Assistir à cerimônia de posse de Lula da Silva foi uma experiência incrível, humana, conciliadora, sociável, que pareceu um sonho. Mais sonho pareceu ao assistirmos aos seus discursos, ao seu jeito carinhoso com os chefes de estado, ao seu carinho e emoção com as pessoas incríveis que lhe passaram a faixa, perceber a sua energia aos 76 anos, perceber uma enorme vontade de fazer bem e de devolver aos brasileiros condições de vida dignas. É também um sonho ver um Governo, com alguns dos melhores cérebros do país, grandes corações, pessoas de bem – exemplos como Silvio Almeida, Ana Mozer, Simone Tebet, Nísia Trindade, são uma pequena amostra. A filigrana sendo escolhida para tratar, curar e desenvolver um país em muito mau estado, arrasado. É tudo muito reconfortante. Enquanto o povo rejubila de alegria, felicidade, esperança, todos eles têm uma tarefa hercúlea pela frente. São extremamente capazes, já fizeram o “retrato” do problema e agora vão fazer tudo para o resolver. O que os espera não é fácil, é uma prova de iroman durante 4 anos. Não é para qualquer um. Além disso, terão muitos espiões aguardando deslizes, erros, fragilidades. Penso que nós população podemos ajudar nessa conciliação e união de todos, nessa caminhada para colocar o Brasil e os brasileiros onde merecem estar.
Pelé. O maior de todos os tempos. Vemos muitos jogadores preocupados em bater recordes de golos/gols, de jogos, de internacionalizações, para poderem dizer que são os melhores, ou melhores do que ele, mas Pelé era os recordes, ele que os criou, por causa dele nasceu a função de volante por exemplo. Ele era a mudança, a criação, a surpresa, o Einstein do esporte, um esportista que mudou tudo. Todos que vieram depois tentaram chegar aonde ele chegou, tentam imitá-lo, nenhum conseguiu nem conseguirá, e nenhum fez um caminho diferente. Porque ser Pelé é ser algo que não existia, não é imitar “melhor” ninguém. É importante que esse conceito possa renascer de novo, em todos os esportes - o atleta que criou algo que não existia, o atleta que preserva o esporte associado a coisas boas, leais, saudáveis. Sua recordação precisa virar algo bom, valioso, único, extraordinário – como ele. Isso me lembra que não tem qualquer sentido existirem jogadores que ganham, milhões de euros por mês. Isso acontece porque são os melhores do mundo? E o que isso contribui para um mundo melhor? Como pode um jogador de futebol ganhar mais do que o Presidente do Brasil? Do que qualquer um dos Ministros? A exigência, a responsabilidade, o risco, as horas de trabalho, a profundidade de conhecimento, a coragem que vão ser exigidas a todos têm menos valor do que um homem que corre, finta e chuta para marcar golo/gol? No século 21, com milhões e milhões de pessoas passando fome, sem lugar onde dormir, sem futuro? Isso precisa ser pensado e precisa mudar. É desproporcional, é injusto, é errado.
2023 tem cheiro de esperança e muita tarefa pela frente. Cada segundo conta, cada ajuda, ajuda, cada sorriso, ilumina, cada sonho, precisa ser tentado.
Obrigada Lula pela esperança plantada e por nos mostrar que nunca é tarde. Seja para quem for e seja para o que for.
Ana Santos, professora, jornalista
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