
“(QUASE) TUDO É UM SÓ CORAÇÃO, NO BRASIL” Bug Sociedade
A gente vê tudo debaixo d’água, pensa no que se transformou o mundo e de repente percebe que existem pessoas que ainda acreditam que tudo o que se tem na vida, se pode guardar, dependendo do que se quer, do que se decide. Mas não é assim. Em um segundo, a nossa vida pode mudar. Totalmente. Eu estava descendo a escada de um museu, aqui mesmo em Salvador, mãos dadas com meu afilhado e Ana. Íamos lanchar no Museu Rodin (que agora é o Museu de Arte Contemporânea). No pé da escada, na calçada portuguesa tão mal cuidada, seja pela Prefeitura ou pelo museu, havia um buraco onde eu pisei de mau jeito porque estava descendo os degraus - e caí. Minha vida mudou naquele segundo. Posso enumerar muitos deles. Cada um de nós pode enumerar os seus segundos “X”, onde tudo mudou.
O Rio Grande mudou também. Caiu uma chuva, ela não parou e tudo mudou para água, correntezas, politicagens, politiquices, malandragens, dor, heroísmo, amor, união. Perda, perda, perda. Tudo diferente, depois de tantas chuvas iguais. Aqui da Bahia, de longe, cada vez que vejo a chuva em Porto Alegre, me fecha a boca do estômago. Cada vez que vejo a previsão do tempo, aliás. Imagine lá, a cada gota de chuva. Isso se chama trauma, medo. Gera estresse.
Se chama também irritação extrema - ver gente manipulando mentiras, equilibrando falsidades, sem se importarem com as vidas de outras pessoas que mudaram no instante em que caiu o primeiro pingo daquele temporal sem fim. Debates cheios de malignidade no Senado e no Congresso, onde ninguém poderia esperar mais do que preocupação com o Sul. Ter que debater (ainda) se a chuva veio do clima extremo, mesmo quando todos sabemos que o aquecimento dos oceanos vai continuar – e com ele as secas e as tempestades pelo mundo. Aqui, a chuva deve ser “comunista” por unir os brasileiros em torno da ajuda necessária para os gaúchos.
Me irrita o ”disse me disse” ao redor das cirurgias do Tony Ramos: não, ele não adoeceu por causa de vacina nenhuma! É terrível que a família dele, transtornada pela emergência médica, ainda tenha que se preocupar em desmentir todas as maldades sobre vacinas, vacinação, etc. E isso tudo está acontecendo por causa de um grupo político apenas. Ofensas públicas, “invenções”, mentiras – e não são só os políticos de ultradireita a se comportarem com esse nível de agressividade – muitas pessoas que aderiram à ultradireita, ofendem ao discordarem, tentam se impor nos ofendendo, coagem com gritos e xingamentos. Novas palavras como fake news e pós-verdade, parecem minimizar o que fazem e falam, mas o que fazem é mentir. Mentir tanto que pareça que não estão mentindo – e isso é maligno porque não estamos aqui perdendo tempo, apenas – estamos perdendo vidas, ajudas, socorros, salvamentos, doações e sobretudo – boa vontade de ajudar. Mas nisso somos incansáveis, historicamente. Eles não vão conseguir nos destituir da esperança de tocar o coração das pessoas. E naquele segundo, naquele momento totalmente extremo onde tudo mudaria para o pior, temos sempre uma mão, um olhar, um bilhete, um carinho.
Brasil é isso. Que vergonha não saberem ainda quem somos, senhores.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“A Bondade” Bug Sociedade
Quando sofremos, o mundo muda, ou é nosso olhar que muda? Sofrer, que aprendemos que é algo mau, afinal é o que a vida utiliza para nos amadurecer e nos melhorar? Porque não aprendemos isso mais cedo? Ou porque não podemos ter um ensaio, antes de realmente ficarmos sem nada? E ficar sem nada é ficar sem nada mesmo? Para que existe sofrimento? O que é ter? Como se ajuda quem precisa? Como se aceita ajuda quando é a nossa hora de precisar?
A vontade de ajudar é uma força muito poderosa. Está provado cientificamente que faz bem à saúde. De quem ajuda – e de quem é ajudado. Matthieu Ricard, cientista e monge budista, refere que “o mais importante na vida é ter uma mente bondosa. Desejar o bem aos outros, dentro das nossas possibilidades, aliviar o seu sofrimento e fazer todos felizes. Segundo ele, existem 3 desafios na vida:
1) A curto prazo - Como me sustento? Como vou alimentar meus filhos amanhã? Como mantenho meus lucros mensais ou anuais, no meu negócio?
2) A médio prazo - Uma geração, uma vida inteira, uma carreira, uma família. Aqui a aspiração natural é prosperar na vida. Se uma nação, (ou um indivíduo) é a mais rica e mais poderosa, mas a mais infeliz, para que serve tudo isso? Não serve para nada.
3) Longo prazo – Este é novo porque, até agora, a terra reparava tudo o que fazíamos de errado. Mas agora somos demasiados e o que fazemos não está dando tempo à Terra para se recompor. Por isso nos tornamos nos grandes responsáveis para a mudança.” (Matthieu Ricard)
Precisamos nos preocupar com o “outro” que não conhecemos, mas que virá depois de nós e não merece encontrar tudo destruído.
Impressionante como as ações que eram normais, passaram a obsoletas. A preocupação dos alunos em deixarem as salas de aula limpas, para os colegas que vêm a seguir. Como se deixa um quarto de hotel, um apartamento alugado, uma cozinha emprestada, a praia onde se passa o domingo a beber e a comer, a mesa do restaurante, o banheiro que se utilizou, o que se atira pela janela do carro ou do apartamento. Como desarrumamos e desorganizamos as nossas próprias vidas e a dos outros. Perdemos a noção do efeito das nossas ações em relação aos outros, em relação aos lugares, em relação à Mãe Natureza. A bondade não é um dispêndio de energia e de tempo. A bondade é o que nos salva – aos que são ajudados e aos que ajudam.
Não existem nem lugares adequados, nem momentos, nem determinado status, para a bondade. Jurgen Klopp, treinador do Liverpool por 9 anos, decidiu fazer uma paragem e retirar-se. Avisou em dezembro de 2023, ontem foi o último dia e deixou o mundo em choque. Diz que se sente vazio para poder continuar a fazer o que faz tão bem – ser bondoso com atletas, funcionários, habitantes da cidade, adeptos. Não esteve apenas naquele cargo por ganância, por ambição, por competitividade. A bondade o fez ver mais além, o fez deixar um legado muito maior do que títulos. Por isso é amado por todos, se tornou um dos grandes do clube, da cidade, do país, do mundo. Lembro da preocupação dele logo no primeiro ano: todos os jogadores teriam de saber o nome de todos os funcionários do clube, se preocuparem com eles e tratarem-nos da mesma forma como gostavam de ser tratados. Afinal todos eram igualmente importantes para os objetivos. De tantas ideias incríveis que teve a bondade de introduzir num mundo tão “cego”, talvez a mais bonita tenha sido a de “mudar o pensamento de todos, de céticos a confiantes”. Acreditar nas pessoas, sejam elas quem forem e de onde quer que venham. Acreditar que todos são capazes de reconstruir as suas vidas. Acreditar que somos capazes de fazer o que nunca foi feito. Criou esse pensamento e o demonstrou na prática. Lindo e estimulante.
Todos somos capazes de ser grandiosos. Mas essa grandiosidade só se alcança se vier com a bondade. Sem bondade só acumulamos coisas, títulos, dinheiro.
Ana Santos, professora, jornalista
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