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Poesia à Flor da Pele

Foto do escritor: portalbuglatinoportalbuglatino

Cipriano Dourado 1921 1981
Cipriano Dourado 1921 1981

“À FLOR DA PELE”

 

“Acende o cigarro, rapariga. E olha para a

rua onde passam transeuntes desconhecidos.

A tarde vai avançando e nós morrendo nela

ou morrendo nela as nossas esperanças,

a ilusão de eternidade. A beleza o que é?

Braços nus, o ventre liso nu, os cabelos caídos

nos ombros. A desconhecida concentra em si

a atenção do homem desocupado. Para

distrair-se, ele olha para ela e recorda-se

da história antiga do amor, reconstrói

ficções que sabe serem apenas ficções. Assim

passa o tempo, depois irá para casa. Quem

sabe o segredo mais secreto da existência

de cada um? Todos nós temos uma

história. Uns calam-na, outros murmuram

entre dentes os episódios essenciais, outros

encontram palavras com que construir o

poema hermético. Que diferença é que faz?

De tudo se constrói a existência, se alimenta

o sentido. Camisa branca à flor da pele, a

rapariga levantou-se e foi lá dentro do café

comprar qualquer coisa. Palavras, deixai-me

celebrar o vão movimento dos ponteiros do

relógio, os episódios vãos, a nossa morte.”

João Camilo

Portugal

 

 

“QUE SE PASSA?”

 

“Claro que não, de maneira nenhuma.

Estava sentada ao meu lado, o desejo

agitava-lhe o ventre, ela semicerrava

os olhos. De maneira nenhuma, assim não,

ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto

e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito

e esperei pelas suas mãos. Continuava,

lento, a ir devagar ao encontro do desejo.

Não tinha pressa. Ela apertava-me

contra si silenciosamente, parecia

dormir e repousava o seu corpo como

se a morte ou uma hibernação o tivessem

ocupado. A televisão passava um filme

de John Ford. Ela ergueu-se subitamente,

afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe,

surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é

o filme de John Ford que acaba de começar?

Não o quero perder. De acordo, pensei eu.

Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro

lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora

caíra a noite há muito tempo. Mas quem

tinha vontade de pensar no que se passava

lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz

baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me

na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto.”

João Camilo

Portugal

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