À propósito das paralimpíadas e do 7 de setembro, nasce a pergunta. Porque você vê pessoas que poderiam apenas maldizer a sorte se multiplicarem e se enfrentarem, mostrando lesões, dores, perdas que não são, não foram e nunca serão suficientes para impedir alguém de vencer ou perder sorrindo e mostrando a nobreza que nasceu com o conceito que os gregos imaginaram.
Ao mesmo tempo você também vê, no mesmo canal de TV, uma história de roteiro mal feito e mal engendrado repetir um acontecimento que foi sendo infiltrado na nossa rotina online, nos ônibus, metrôs e conduções, no passo dos pedestres para nos amedrontar. Deveríamos temer ou respeitar? Deveríamos querer ser iguais ou pensar à contragosto que entre uma mansão e outra, lá vai a semente do “eu prendo e arrebento” - de novo para “nos convencer” que somos menores, medrosos e alienados.
Somos?
Daniel Dias, nadador, 27 medalhas olímpicas, quase não tem braços. Não pode segurar fuzis, metralhadoras ou pistolas com destreza nenhuma, mas sabe cantar o hino do seu país, sabe representá-lo com coragem e sabe vencer e acolher todos os atletas em seu sorriso. Sabe sorrir para o seu povo a cada pódio. Ele se despede da Paralimpíada de Tóquio como herói do Brasil. Herói é assim: apenas se atira na empreitada proposta e tenta o melhor que pode.
Durante o atentado nas Torres Gêmeas, no 11 de setembro, um capitão dos bombeiros dizia que os soldados tinham 1 minuto para subir cada andar. 1 minuto. Um dos soldados disse que as torres tinham 120 andares e que eles subiriam sem parar por 2 horas, para chegar ao alto – e todos teriam morrido, então. O capitão lhe disse apenas para subir sem pensar e salvar o máximo de pessoas. Um herói é assim – ele apenas é, sem pensar, sem calcular, sem precisar planejar como reunir e convencer pessoas “que está acontecendo alguma coisa que não está acontecendo”, na verdade. Quem faz isso, ao contrário, é calculista – ai, que feliz ou infelizmente todas as coisas têm nomes e precisam ser nomeadas – porque os calculistas têm intenções inconfessáveis que precisam estar ocultas dos olhos ingênuos. Dos seus olhos. Dos meus. Dos nossos.
Uma Paralimpíada tem verdadeiros heróis – que realmente, têm brados retumbantes de coragem, enfrentamento de dificuldades e vicissitudes. Lhes faltam braços, pernas, movimentos, mas não lhes falta a coragem de enfrentar todos os problemas e vencê-los porque têm coragem para enfrentá-los. Têm nobreza de espírito, são invencíveis. Eles são o Brasil verdadeiro.
O outro, é um “tiro ensaiado”, que está sendo marcado e remarcado para parecer grande, muito maior do que é, na verdade – mas ser realmente grande num País como o Brasil, tão cheio de problemas, não passa por chamar um homem de idiota e lhe dizer que deveria comer fuzil, enquanto você continua comendo a carne que ninguém mais tem dinheiro pra comprar. Uma carne comprada com o nosso dinheiro, o nosso sangue e o nosso heroísmo.
O que é um herói, então? Como reconhecê-lo? É fácil: Ele não precisa insuflar, envenenar ou malbaratar o sacrifício dos outros porque é ele quem enfrenta, é ele quem se sacrifica; é o peito dele que está aberto, nos protegendo do perigo e não nos colocando perigosamente diante dele.
Portanto chegamos ao dia 7 de setembro. Um dia comum, como todos os feriados dos últimos, 20, 30 anos. Um dia em que não acontece nada de mais. Se viaja, se passeia, não se faz nada, na frente da TV. Dia do nada. Do ócio merecido. Quem inventou essa história idiota de revolução não nos vai proteger porque nada está acontecendo espontaneamente; tudo é uma ficção mal feita, tosca e mal acabada. As pessoas querem vacina, saúde, emprego, educação e liberdade e isso sim é uma revolução e tanto num país onde todos tentam ludibriar, esconder, camuflar intenções. Todo o resto é mentira, enganação, bobagem. Portanto, melhor é a realidade. O nosso dia do nada. Merecido. Quem puder vai passear, ler, ver TV. Os verdadeiros heróis ainda estão em Tóquio ou estão ralando nos plantões da vida para que nós possamos ter feriado . Vamos torcer por eles.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
O que não se vê, não se sabe, não se fala, não existe? O que se esconde não existe? O que nos envergonha e tentamos não ver, não existe? O que não aceitamos não existe? Sabemos a duras penas que não é assim mas pouco fazemos. Os que mostram, dão notícias escritas, faladas, com imagem, são muito responsáveis por isso. Somos muito responsáveis por isso. Deveríamos tornar visíveis a melhor parte de cada um. A verdadeira, não a desejada e fantasiada. O lado heróico de cada um. Dar espaço a todos. Perder um pouco o hábito de perseguir o melhor de todos, o maior de todos os tempos, o recorde do recorde. Não perder o chão nessa busca. Limites que são quebrados, algo que nunca ninguém fez é maravilhoso, mas sem modismos. Com menos marketing, menos hipocrisia. Isso é importante para que tudo não vire nada. Para que os verdadeiros valores permaneçam. Senão, se eu tiver o carro X, a casa Y, as pulseiras H, o relógio T, os amigos W, já sou um herói. “Compro” meu certificado de herói. E sabemos que não é nada disso.
Um futebolista talentoso com os pés não é necessariamente o melhor orador nem o melhor exemplo de educação, de cultura, de humanidade. Nem tampouco é um herói por marcar golos/gols ou colocar a bola no cesto ou realizando o melhor saque/serviço. Os melhores jogadores profissionais dirigindo seus carros que ninguém mais tem, podem ser considerados heróis enquanto houver pessoas que não têm água para beber, comida para comer, um lugar para dormir, sentindo-se um fardo social? Tem algo de muito errado nisso. Sabemos disso e nada fazemos. Os dias passam, os heróis circulam no mundo fazendo de tudo para nos manterem vivos e nós só aplaudimos os que nos divertem.
E rimos, gozamos, sentimos repulsa de quem sofre o dia a dia de dificuldades e limitações? Nas crianças e jovens isso chamamos de imaturidade. E nos adultos do que chamamos?
Cada pessoa tem o seu valor. Cada um no seu caminho, nas suas dores, é um herói. E deve ser tratado como um. E divulgado como um. Acarinhado. Respeitado.
Este ano, pela primeira vez as televisões param “ligeiramente” para mostrar “lives” dos Jogos Paralímpicos. “Ligeiramente” porque os Jogos Olímpicos passavam em 4 canais esportivos e agora passa em um canal e mostra só algumas modalidades. Onde competem os brasileiros. Certíssimo. Mas além disso é importante mostrar outras modalidades. Se não mostram, as pessoas não sabem que existem e não se coloca uma semente de algo novo – algo muito importante. Me emociono permanentemente. Fui atleta, treinadora. Achava que tinha feito algumas coisas interessantes, difíceis. Mas me sinto tão pequena, tão envergonhada e ao mesmo tempo sentindo que não fiz nada de especial. Tive a sorte de ter um corpo equilibrado, coordenado, saudável. Sorte. Muita sorte. O que estas pessoas fazem com suas limitações é impressionante! Impressionante. Como diz muito bem uma das comentadoras/comentaristas, “são apenas características” diferentes.
Os que mais me impressionam são invisuais que saltam, que correm provas de velocidade. Como conseguem? Daniel Dias, com 27 medalhas paralímpicas. Um trajeto invejável. A lançadora de disco, ouro e recordista do mundo com 56 anos. Maravilhoso. Meu olhar e meu coração ficou preso em Gabriel Araújo. Mineiro de 19 anos. Uma alegria, uma vida, uma luz... Um nadador improvável. Um campeão. Medalha de ouro e medalha de prata. Um herói. Deixo abaixo o link da prova dele em que venceu o ouro. Veja. É impressionante. Mas tem outros mais. Tem muitos mais. Muitos, muitos, muitos. Heróis, exemplos, referências. Pessoas que merecem visibilidade, carinho, respeito, admiração. E principalmente, apoio financeiro. É impressionante o que as pessoas no Brasil fazem com tão pouco. A capacidade de superar momentos como o da pandemia, de sobreviver e vencer nesta instabilidade, insegurança, desorientação, imaturidade de líderes patéticos. Mas, é bom sempre recordar, quem sobrevive com pouco merece muito. Não é porque consegue com pouco que a riqueza é só para alguns. Chega dessa injustiça feia, desumana, vergonhosa, ridícula e asfixiante.
Estes atletas paraolímpicos fazem-nos sonhar. Fazem-nos acreditar no improvável, no inesperado. Fazem-nos persistir no meio de tanta injustiça, maldade e exclusão. Obrigada a todos. Todos são heróis. E, para nosso espanto, nos mostram como era e como precisa voltar a ser – existe o momento de competir e no final amigos, abraços, alegria e convívio. É assim tão difícil? Estamos cheios de ódio, de inveja, de ganância. Para quê? Para chegar onde? Ao lugar dos heróis artificiais? Acho que isso não dá a resposta que viemos todos buscar aqui a este planeta não.
Pensem nisto comigo. Julgo que um dia devemos fazer justiça e colocar em primeiro lugar os Jogos Paralímpicos. Lhes dar toda a visibilidade, todo o carinho, todo o apoio financeiro e emocional. Duas semanas depois, seriam os Jogos Olímpicos com os que foram abençoados fisicamente. Também aplaudidos. Também acarinhados. Totalmente. Merecidamente. Julgo que seria algo bastante justo e penso que todos ficaríamos felizes. Se a logística não fosse tão pesada o ideal seria todos juntos num enorme momento dos Jogos Olímpicos – atletas olímpicos e atletas paraolímpicos.
Aos heróis que vemos todos os dias e aos que não vemos, ao que permitem que possamos ter comida, casa, água, electricidade/eletricidade, ruas limpas, etc. Aos que tentam nos salvar quando ficamos doentes, aos que tentam descobrir curas de doenças. Aos que nos amam, nos respeitam, nos admiram. Eu vos vejo. Eu vos sinto. Eu vos respeito. Eu dependo de vocês para ser feliz. Eu sei como é difícil ser como vocês são. Heróis de construção, não heróis de fachada. Obrigada. Muito obrigada.
Ana Santos, professora, jornalista
Medalha de ouro de Gabriel Araújo
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