Entre o “politicamente correto”, o “socialmente aceitável” e o totalmente egocêntrico e requerente de iluminação de suas próprias ações, a generosidade do século XXI emerge das sombras da polarização e aparta os generosos que vêm da arte, da cultura e da ciência – que poderiam e deveriam ser aclamados – chamando-os de um nome genérico e incompreensível, tal qual comunista ou esquerdista. Já os advindos da sua parte incompreensível, veem perseguições frenéticas de seres ou chips com GPS nas picadas das vacinas, além de pênis nas entradas das grandes instituições científicas do Brasil. Estes são arrebatados pela generosidade que “molda a verdade para o bem maior”.
Mas, à queima roupa, quando você esbarra com o catador de latinhas que rasga os sacos de lixo da sua rua e ele lhe pede um leite pra filha pequena, você pensa em que? Em quem? Você dá 10 passos atrás e pega uma caixinha de leite ou pega seu ar blasé do armário e finge que não vê ninguém na sua frente? Claro que na sua reunião de departamento, você pode ser um daqueles que sugere que o dinheiro do SUS deveria ir para “atividades que estimulam a economia” ...
O que está acontecendo no mundo? Vamos separar uma parte da sociedade da outra porque nem vamos tentar nos ouvir? Alguém acha mesmo que o catador de latinha da sua rua não tem nada a dizer? Mas quem quer ouvir? Ele cata lata porque quer? Ele não estuda porque não quer? Ele mora na rua porque escolheu?
Sem perguntas, não existe sociedade porque não existe interesse porque não existe empatia. Quantas perguntas que não envolvem a sua vida você faz por dia? Não vale também embromar colocando a vida da sua família, dos seus bens, das suas declarações de propriedade, das suas doenças.
É assustador como, cada vez que se tenta olhar para o lado, logo aparecem pessoas para taxar “esquerda, partido, comunista, chinês”. Porque, na maior parte do tempo, deveríamos lembrar, evocar, chamar de você é bom ou mau ou egoísta ou invejoso ou surtado. Nada, nada, nada, portanto, no coletivo.
Que ninguém se iluda a respeito: essas ações não são partidárias ou coletivas. Elas são individuais. E más. Horríveis. Desprezíveis. E se algum movimento – qualquer que seja ele – despertou essa falta de questionamento em alguém, corra para o banheiro e se olhe firmemente ao espelho – você tem um problema grave. Se não é capaz de falar, olhar, se dirigir com gentileza a qualquer pessoa, você tem um problema. Não há nada que custe menos e que seja mais generoso do que sustentar um olhar compreensivo. Mesmo que você não tenha nada, você sempre terá um olhar, uma palavra.
Vamos nos destruindo aos poucos, colocando nas redes sociais o que deveria ser feito e sobretudo o que não deveria ser feito pelos outros, claro, porque todos se tratam como perfeitos – da foto, com a receita da comida fotografável, até tudo que não tem e nunca teve nenhuma importância na vida. Generosidade mesmo é aquela invisível, despretensiosa, que não vive através do oxigênio do Facebook, lembra? Aqueeeela.... nossa, meio perdida nas ações que ficaram visíveis depois da partida de Paulo Gustavo... o artista ou comunista, ou bicha. Um homem muito bom.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Mudar de calçada se estiver alguém a mexer no lixo, em busca de algum resto de comida desperdiçado por quem tem demasiado.
Abrir um sorriso maior, proporcional à qualidade da roupa, à marca do carro, à rua onde você vive, a casa onde mora, o trabalho que tem, o nome da família, a cor da pele, o país. Passar de sorriso a gargalhada se essa pessoa é pessoa pública, se tem milhões de seguidores.
Determinar os amigos “verdadeiros” pelo que eles têm a nos oferecer financeiramente, para a ascensão social ou em oportunidades de sucesso.
A invenção da ajuda remunerada. “Posso ajudar você. Só precisamos conversar” – determinar o preço. A invenção da nova forma de ficar a dever um favor. “Tenho um convite sério para lhe fazer. Agora sim você vai começar a fazer o seu caminho profissional. Este domingo quero que venha dar uma palestra no meu condomínio. Passo muito importante. Depois terá direito a tomar um café da manhã com bolo e gostosuras. Legal né?” – a tática do controle.
A generosidade de te oferecer um trabalho, das 8h às 17h, cheio de impostos, deveres. Nem pense em chegar atrasado. Se possível chegar bem mais cedo. Será valorizado. Também se prepare porque alguns dias não serão duros, mas a partir das 16h30, 17h terá surpresas e você terá de fazer esses trabalhos surpresa até terminarem. “Mas não é até às 17h?” Não quer? Tem muitos na fila aguardando você desistir.
Funcionário público? “Tem muitas regalias”. É necessário diminuir, atrapalhar, retirar todas as vantagens e direitos. Tirar estímulos. Denegrir. Humilhar. Exigir alto desempenho de qualquer tema ou especialidade, mesmo as que nunca teve acesso nem tempo para se dedicar. O que passa a ser exigido é completamente desproporcional ao que se apoia ou se incentiva ou se protege. Uma espécie de bullying sistêmico silencioso. O sistema, que paga, parece um espelho que vai baixando a autoestima dos seus funcionários lentamente, ao longo de anos. Até que os próprios funcionários aceitam que são incapazes e uns abandonam e outros obedecem. Ambos perdem o que de mais puro e nobre possuem – sua criatividade somada com sua experiência e paixão por ensinar que sempre fez milagres e magia na sua produção.
O “amigo” que diz que te resolve o problema mas que para isso precisa de uns “trocos” para acelerar o processo em alguns momentos. O profissional que diz que consegue espaço para o teu serviço, mas que para isso, terá de receber uma parte e que isso é normal. O cara que se oferece para limpar o terreno baldio por um preço bom – 4 mil reais???. Acaba por ser feito por outra pessoa, por uns 250 reais, divididos pelo pessoal amigo que vive na rua. E, de vez em quando, a magia acontece e é um serviço “feito” pelos cavalos dos amigos do Calabar, com um dia ou dois de pasto. O cara que passa todos os dias em frente a tua casa e do nada te traz muda de capim limão para plantar.
Aí vem o senhor da fruta que não cobra a fruta que vem mais madura, que te avisa que o abacaxi não está doce e não o vende a você. O cara da água de côco que te avisa para ir mais cedo comprar porque vou conseguir côcos com mais água. O porteiro de um prédio, que nem te conhece, apenas te vê passar de vez em quando e te oferece uma muda de manjericão.
Generosidade? Você sabe o que é? Sabemos o que é? As pessoas que lideram os países, a economia, sabem o que é generosidade? O profissional que só “ajuda” se for no seu local de trabalho e se tiver retorno financeiro, sabe o que é generosidade?
O fino espaço que, se ultrapassado por um lado, vira exploração, e se ultrapassado pelo outro lado, vira negócio. O fino espaço de ser boa pessoa ou interesseira ou abusadora. O fino espaço de sermos pessoas que somamos, com quem se conta. Onde não interessa ter ou não dinheiro. É ter outras coisas. Ter o outro como uma preocupação. Sempre.
Ana Santos, professora, jornalista
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