Conto "Memórias do Natal", de João Paulo Pimentel
"Como foi diferente o Natal! Diferente até pela originalidade e prazer de ser o primeiro em casa própria, mas ainda assim sem a “encantamento” de muitos outros. Desde logo, pela escassa dimensão de convivas que, pese embora o ditado “Três, a conta que Deus fez”, soube a pouco... Para lá de toda a simbologia do número 3, também fortemente associada à data natalícia, trouxe-me, no entanto, à memória outros três. Os três irmãos, que enquanto crianças de tenra idade foram habituados a um Natal que deixou fortes memórias. Passado na aldeia “natal” paterna, era sempre repleto de um misto de emoções, que se iniciava com uma penosa e longa viagem de automóvel. Três (!?) longas horas que muito cedo se revelavam aos nossos olhos e barrigas, intermináveis. O “ainda falta muito?”, “mamã trouxeste alguma coisa para comer?” eram repetidamente verbalizados a cada quilómetro, a cada curva e a três. E eram muitas as curvas! O imaginário das famosas e perturbantes “curvas do Marão” era real e tantas vezes o início da grande emoção. Ainda que já com a barriga aos saltos, com as alterações de humor de alguns e depois dos habituais alertas maternos. “quem tiver mal disposto tem de avisar com tempo!!”, ... ao primeiro vislumbre de neve tudo se dissipava. Era como entrar numa nova e desejada realidade. Sim, Natal sem neve, não era Natal! Pelo menos uma boa dose de geada era exigida para as brincadeiras do costume. Por aqui começava a verdadeira emoção e o apego pelas coisas simples. O contacto com a família mais afastada, (indiscutível e sempre com a reverência exigida), aqui e ali acompanhadas com inesperadas e saborosas recompensas de ocasião que, após uma primeira e curta indecisão, nunca se revelavam suficientes. As noites passadas em comunidade, no largo da aldeia, à volta da esplendorosa fogueira de enormes madeiros ou canhotos ateados ao anoitecer da véspera de Natal, geralmente, mantidos acesos até à passagem de ano. O ritual cristão ao culto divino, originário do rito pagão, considerado o «verdadeiro símbolo do Sol que vai nascer, para iluminar todo o homem que vem ao Mundo». O fogo simbólico que, após o aconselhado jejum, anunciava a “receada” Missa do Galo, celebrada à meia-noite, anunciando o nascimento de Jesus e a primeira eucaristia de três que compunham a liturgia do dia de Natal. A tradição do fogo na lareira familiar, onde se partilhavam as reconfortantes iguarias, as histórias antigas, os jogos tradicionais, algumas lengalengas, e até os inevitáveis ralhetes “não mexas no fogo que fazes chichi na cama!”. Sim, toda a ação se passava à volta da lareira da cozinha, à sombra da enorme chaminé e dos enegrecidos enchidos perfeitamente alinhados e suspensos por cima das nossas cabeças. A mesma chaminé que nos impingiam como “porta” de entrada do Pai Natal, e que tantas vezes nos fez temer pelo destino de tal tesouro. A noite terminava numa penosa, mas rápida, ida para a cama. Uma cama a três, que o rigor do inverno impunha como uma noite tranquila e sem sobressaltos, tal o peso dos cobertores que nos dominavam e literalmente esmagavam contra os velhos colchões de palha. Só mesmo um esforço conjunto, na manhã do dia de Natal, permitia um súbito e agitado acordar que a ansiedade dos desejados presentes impunha. À lareira, sempre à lareira e ao calor do fogo divino, venerando um culto tão misterioso quanto saboroso, quais ... Guardiões dos Enchidos. Como era diferente o Natal!"
João Paulo Pimentel
Janeiro 2021
@jpaulopimentel62
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