A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 9 de 9
21 horas e 43 minutos
Depois da cozinha arrumada, o Filho regressa ao seu quarto e o Pai e a Mãe dirigem-se para a sala. O Pai leva uma caixa de amendoins que vai descascar e comer enquanto assiste a uma série na televisão. Mesmo varrendo o chão diariamente, há sempre junto ao sofá minúsculos pedaços de casca de amendoim. A Mãe vai buscar a base de cartão onde está a montar o segundo puzzle de 1000 peças e coloca-a em cima da mesa de jantar. A imagem representa uma árvore no outono, com inúmeros pássaros na copa e pessoas em atividades diversas em redor de um lago. Num dos cantos, três vacas a pastar dão um apontamento bucólico à paisagem. O puzzle que terminou antes representava a mesma imagem, mas na primavera, com a árvore em tons de rosa em vez dos amarelos e ocres outonais.
Há dias, num destes serões tranquilos, o Pai abeirou-se da Mãe enquanto ela separava peças e perguntou-lhe se, por vezes, não lhe acontecia pensar se esta situação era mesmo real ou se iam, a qualquer momento, acordar de um sonho esquisito. Ela respondeu que agora já não, mas que permanecia a sensação de irrealidade. Acontecia-lhe parar, perplexa, com a transformação que a vida sofrera. A realidade superara os cenários de ficção e, sem aviso prévio, as pessoas passaram de espectadoras a protagonistas num drama da história da humanidade. A Mãe conta que uma destas noites sonhou muito. Conta ao Pai que, no sonho, chegava ao ginásio para treinar e o quadro estava tão longe que não conseguia ler os exercícios e havia gente e material espalhado por todo o lado e ela estava a ficar enervada e ia começar a protestar, quando a sala se transformou num auditório onde ia começar uma palestra. Então, pelo meio das cadeiras surgiu um veículo todo-terreno, uma espécie de trio elétrico de carnaval, dirigindo-se para o palco, e atrás vinha toda a família para assistir à Filha a cantar uma peça de Beethoven nas festas dos Dias da Música. Tudo era alucinante e confuso, mas ninguém falava de Covid-19 nem de distanciamento social. Ela não estava preocupada com desinfeções e o excesso de proximidade entre as pessoas sem máscara e a única coisa que a angustiava era a falta de organização daquela gente que parecia louca. O Pai puxa-a para perto de si e dá-lhe um beijo na testa e diz-lhe:
- Apesar da sensação de irrealidade que nos acomete às vezes, é preciso manter os pés na terra, o sorriso nos lábios e a fé no futuro. A ver se nos levantamos bem, quando acabar este sonho esquisito.
22 horas e 59 minutos
A Mãe arruma o puzzle e prepara-se para se ir deitar. A caminho do quarto, passando pelo hall, a Mãe fita repentinamente a caixa de cartão ao canto do hall, debaixo da cadeira.
- Ah! A encomenda! – exclama - Tinha-me esquecido completamente dela! Venham ver, é para os três.
O Gato levanta-se de repente, surpreendido com o alarido. Eu sinto a luz do teto a tremer de excitação.
Na indicação do remetente lê-se o nome da Filha. Dentro da caixa estão três embalagens de plástico metalizado colorido. A Mãe distribui os pacotes e cada um abre o seu. São meias com padrões divertidos, escolhidos especialmente para cada um deles. As pantufas e as meias ganharam uma importância acrescida agora que os sapatos ficam à porta de casa, e ter meias especiais deixa-os felizes. Calçam-nas e dispõem-se em roda para tirar uma fotografia aos pés e enviar à Filha, em jeito de agradecimento.
Subitamente, é como se a Filha estivesse com eles, no centro daquele círculo de pés próximos, onde o distanciamento social não se impõe e seguem para as suas camas com as meias novas dos pés.
23 horas e 48 minutos
Estou cansada, não tenho descanso agora, enquanto a família não dorme. Tenho o soalho dorido de tantos passos. O Gato gosta de ter companhia, mas por vezes também procura refúgio nalgum canto reservado, longe de todos os olhos.
Apesar disso, sinto-me orgulhosa por saber que sou o escudo que protege a minha família desse mundo exterior que se tornou hostil, fechado e cruel, que os magoa pela ausência de tudo o que enchia. As ruas estão tristes, as lojas fechadas, vazias, com montras demasiado arrumadas. No parque infantil, os baloiços oscilam ligeiramente com o vento, pesarosos com ausência das crianças.
No exterior, uma barreira que não é física, mas é quase sólida, separa pessoas, que dão passos a recuar cada vez que alguém se aproxima, lembrando a toda a hora que estes não são tempos normais e que os tempos que outrora viveram vão demorar muito a regressar. Com as caras tapadas pelas máscaras tornou-se muito difícil ver sorrisos. As vozes estão abafadas por uma camada de pano e as gargalhadas deixaram de estar livres para se ouvir. Os amigos não se abraçam e o toque passou a ser um luxo.
O futuro permanece carregado de receios e nos vidros das janelas colam-se arco-íris para fazer acreditar que vai ficar tudo bem.
Longe da confusão e do barulho, obrigadas à clausura das casas, obrigadas a abrandar, as pessoas estão a aprender a escutar-se a si próprias e a repensar as coisas que são realmente importantes.
Tal como a Mãe, eu guardo a esperança na humanidade e a crença de que, quando puderem novamente viver sem medos, as pessoas se lembrem que um dia, exatamente na altura em que a distância lhes foi imposta, o medo aproximou-as umas das outras e, na incerteza, foram todas iguais.
Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3
Episódio 4
Episódio 5
Episódio 6
Episódio 7
Episódio 8
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
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