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2 Contos: “VIDA PROIBIDA NA VIDA REAL” e “Não é Ser Como, mas Ser Com”

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 10 de mai.
  • 6 min de leitura


Conto “VIDA PROIBIDA NA VIDA REAL”

O telefone tocou – de novo – pela centésima vez, naquele dia. Tinha lido que o Brasil recebia por mês 10 bilhões de ligações feitas por robôs. 10 bilhões! Pequeno silêncio, você se levanta, atende – nada – é só pra saber se a linha está viva ou não.

- A partir daí, espere vendas, golpes, jogo, intimidação! Como isso é permitido?

Não achava graça naquilo. Como as crianças eram tão facilmente cooptadas – ou ainda pior – como os pais poderiam achar natural que seus filhos jogassem – ou pior – como eles poderiam passar pela vida de um filho sem saber?

- Que mundo perigoso é esse, meu Deus? Ainda bem que o Beto já voltou da escola e ta no quarto, quietinho...

Mas a vida de Beto poderia ser chamada de tudo, menos de quietinha. Por um beijo – filmado – sua vida era um inferno. Tinha que seduzir para depois machucar, se machucar, ser sexualmente permissivo.

- Se você não fizer tudo direitinho, vai se lenhar com a gente! – E o direitinho incluía cada vez mais coisas dolorosas. Sua mãe, eventualmente chegava à porta e gritava:

- Filho, ta acordado?

No Accord e no Telegram, ele tinha uma atuação gigante – ninguém sabia. Abria várias páginas e quando sua mãe chegava no quarto, ele ouvia seus passos e, rapidinho, acessava outra.

Um dia lhe pediram para se machucar. Ele ouvia sua mãe andando pra lá e pra cá na casa, arrumando, lavando roupa, cantando pelos corredores. Nessas horas suava frio... e se ela descobrisse que ele ia lá todos os dias acuado? Se descobrisse que ele apenas tinha medo de não obedecer?

- Cadê seu gato? – Ele logo gelava:

- Nnnão ta aqui hoje não... Meu pai levou o gato pra....

- Eu to vendo o gato! Não mente pra mim porque eu vou aí e mato seu pai na sua frente!

E assim ele tentava mentir para o cara da deep web, tinha que mentir para seus pais, enrolava particularmente sua mãe, tentava sobreviver desesperadamente ao seu lado secreto e... sofria... Algum dia seu gato seria maltratado. E seria ele a fazer mal ao coitado.

Cada vez que chegava em casa, cada vez mais desesperado com o sofrimento que iria passar, via sua mãe sorrindo e agradecendo ao céu por ele ter chegado bem da rua. Como lhe dizer que o perigo estava em casa, ali no seu quarto? Tomava coragem mil vezes por dia, queria, precisava loucamente de ajuda... Ela ia ficar tão decepcionada...

De mentira em mentira, se prostituía na internet, pra não ter que quebrar as perninhas do seu gato. Tudo online. Tudo na “segurança” do lar...

- Filho, ta acordado?

Ele se olhava no espelho, entorpecido pela dor de não ter com quem falar.

Sua mãe continuou passando pela porta do seu quarto e falando aquelas frases sempre tão bobas, como se ele não soubesse ainda o que era maldade. Ele era o exercício da maldade alheia, na verdade.

- Queria que o mundo fosse como os contos de finais felizes, mas...

Cada vez que o celular vibrava, ele tremia. Sua vida virtual desmoronou e ele nada falava - com ninguém - na vida real. Não tinha vida real, em resumo. Valeram-se do silêncio com ele; ele valia-se do silêncio com os outros. Perdeu o ano na escola. Perdeu os amigos verdadeiros. Se sentia vivo, apenas enquanto se prostituía com aquelas pessoas que não conhecia. Era o “adolescente feliz” mais infeliz que conhecia.

Sua tristeza se espalhou pelo quarto, pela casa, pela sua vida e a dos outros. Sua infelicidade era mesmo universal. Teve que matar seu gato. Online. Leu que há pessoas viciadas em violência. Ele? Ele era a vítima dela.

- Um beijo... Como um beijo pode destruir a nossa vida?

- Filho ta cordado?

Sua mãe? Nunca percebeu nada.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Não é Ser Como, mas Ser Com”

Vivia, como todos viviam. Achava ela. Todos acordavam, todos iam no banheiro e tomavam banho, tomavam o café da manhã, saiam para trabalhar. Os mais novos saiam para estudar. Enquanto teve idade de estudar, estudou, quando terminou os estudos, trabalhava. Também teve momentos da vida em que sentiu necessidade de estudar enquanto trabalhava. Mas mais isto ou mais aquilo, vivia da mesma forma que todos os que conhecia.

Mas foi na faculdade que percebeu melhor a sorte que teve e tinha. Foi para uma cidade afastada da sua casa. Perdeu todos os hábitos, todas as rotinas a que estava habituada. Vivia noutra cidade, noutra casa, estudava numa faculdade imensa. Desconhecia a cidade, suas ruas, não sabia como funcionava o ônibus. Como tinha medo de se encrencar, ter de pagar mais do que o que tinha no bolso, caminhava para ir para os lugares.

Enquanto todos os seus colegas da faculdade, que vinham de outras cidades, tinham de alugar quartos muito pequenos, em casas com ambientes complicados, ela pode ficar com sua irmã mais velha num apartamento de uns tios. Uma benção. Mesmo sendo um apartamento muito mais pequeno do que a casa que estava habituada a viver, era um lugar de paz, de segurança, onde todas as terças e quartas feiras tinham a visita dos tios, e no resto da semana eram apenas as duas. Sua irmã trabalhava e de noite estudava. Mas dava para se verem, para estarem, todas as noites um pouco. Dormiam num sofá cama as duas. Ela não dormia, “desligava”. Sua irmã dizia que de vez em quando apanhava uns sustos, porque ela dava uns pontapés e uns esticões durante o sono. Ela dizia que não eram esticões, eram sonhos em que jogava voleibol, em que corria, em que saltava. Ela a esportista, a irmã artista.

A diferença de 5 anos, que era muita quando eram jovens, foi-se dissipando e de irmã mais nova com irmã mais velha se transformaram em grandes amigas. Ela sempre desejou ser como a irmã - inteligente, linda, simpática, corajosa, destemida, sem medo de enfrentar fosse o que fosse, fosse quem fosse, lutar pelos seus direitos e dos outros, culta, visionária. Não era capaz de ser como ela mas sempre tentou aprender com ela.

Na faculdade, conheceu muita gente, muita gente importante, muita gente de sucesso, muita gente admirada e bajulada. Depois profissionalmente conheceu mais gente ainda – famosos, eleitos, poderosos, artistas, esportistas, milionários, bilionários até. Mas ninguém nunca chegou aos calcanhares de sua irmã. Cada um tinha algo a ensinar-lhe – aprendeu – cada um a fez avançar no seu caminho na vida, na sua maturidade, mas nenhum lhe ensinou o que aquela irmã ensinou – a enfrentar as injustiças; a lutar pelo que é certo para todos, não só o que é certo para si; a divulgar a boa música que descobria nas suas pesquisas; a cuidar; a criar arte por todos os lados e com todas as coisas. Mas principalmente, porque em tudo o que fazia, existia intensidade e uma profundidade, um caminho diferente. Queria ser como a irmã, mas como se ser alguém que não se é? Como ser igual a alguém que é única? Especial? Transformadora?

Esperava ser espantada e assoberbada por novidades e aprendizagens incríveis nos anos da faculdade. Vinha de um lugar pequeno, fechado, mais fechado para uma menina jovem e imatura como ela. Aprendeu bastante, mas nada a espantou. Em vez de se sentir espantada pelo que os professores ensinavam, seu espanto e felicidade aconteceu na primeira vez que foi ao teatro com sua irmã, o espanto de ir a um espetáculo de jazz com sua irmã, o espanto de conhecer o mundo das artes visuais, os cantores e canções e músicas que sua irmã ouvia. O saber colocar-se em discussões, em assuntos polêmicos, ter sempre em conta sua dignidade perante o desenrolar positivo ou negativo das relações com namorados ou namoradas, ser criativa fosse em que situação fosse.

Agradecer, agradecer e agradecer. As paixões por teatro, cinema, artes, música, sua curiosidade, ser dona do seu destino, tudo isso lhe devia. E tanta coisa que ficará entre as duas. Estudou para tantos exames ao som de Keith Jarrett, que sabia de cor o Concerto de Colônia.

Caminhou na vida, foi longe, fez coisas únicas. Fez esses caminhos desconhecidos, quase impossíveis. Tudo por ter tido uma luz que lhe iluminou o caminho, que a acompanhou, que lhe dizia: “vai, segue, sempre”, sem falar uma palavra.

Na verdade, no fim da vida percebeu que não queria ser como a irmã mais velha. Nem nunca conseguiria sê-lo. Não era bem isso. O que queria era estar sempre perto dela. Muito melhor, muito para lá de querer ser como ela.

Ana Santos, professora, jornalista


Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.

 

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