Conto “UMA SEMANA FAZ DIFERENÇA?”
Sol sem chuva. Mais uma semana assim. A cadela que cuidava, enquanto seu dono se recuperava - tão velhinha, coitada – pensou ontem que a água que regava a grama era chuva e ficou “atravessada” com aquela “coisa que caía” e que, quando ela chegava perto pra se refrescar, mudava de lugar.
O mesmo se aplicava nas guerras? Mais uma semana de mesma coisa? Bomba, míssil e desgraça anestesiam?
- De jeito nenhum – pensou.
- Na guerra, um dia que seja, conta. Tem gente viva que, em um dia, pode não estar mais viva. Fica essa discussão patética sobre quem foi atacado primeiro, se a pessoa esqueceu quem morreu, a violência de quem matou, etc. Mas daí a matar todo mundo, a juntar a população inteira de um País num pedacinho de terra, encher de bomba, tirar a água, a luz, o combustível, a comida e achar que isso é normal... não é normal, não...
- Você pega uma criança de qualquer lugar do mundo e ela precisa ser igual à outra criança. Se uma morte é trágica, a outra também tem que ser.
- Ah, mas tem povo que sofreu muito – dizia um conhecido de caminhada.
- Tem. Mas quem sofre muito não é capaz de reconhecer quando está fazendo alguém que não tem culpa nenhuma sofrer também e para, dá um respiro, pelo menos? Não tem a compaixão de quem reconhece o sofrimento, a empatia, whatever?
A gente acorda de manhã cedinho do outro lado do mundo num País enorme, lindo, onde as mangas podem cair na sua cabeça quando você anda na rua, onde as religiões se misturam, se dão bom dia, todo dia e quer estragar isso polarizando, idiotizando, arrumando encrenca onde não tem. A gente aceita todo mundo aqui porque não tem o problema do dinheiro... A gente aceitaria se tivesse? Ou a pobreza é uma forma de se saber o motivo de dividir? Tinha ouvido dizer que 99.9% das pessoas nem sonhavam em ser bilionárias... Na verdade, nem sabia imaginar 1 bilhão, em notas – que dirá 10, 20, 30 bilhões!
- E pelo mundo, são esses caras que vendem as bombas que matam as crianças... de qualquer País, de qualquer tiro, míssil, doença ou falta de comida. São eles que invadem as florestas, são eles que não acreditam que todos podemos caber aqui, nessa vida de meu Deus, nesse mundo de meu Deus. Vão vender terrenos no céu para os crédulos, como vendem petróleo e gás, por aí, pelo mundo...
Nada de corredor de salvamento, nada de paz na Europa, nada em Gaza, nada na Síria, nada na Etiópia e Sudão, nada no Iêmen. E o mundo, tendo comida pra dividir, vê os miseráveis que não conseguimos alcançar e aqui na nossa terra tão “boinha”, temos muitos outros meninos que a pobreza, a falta de oportunidade e escola não conseguem salvar, os pais que não sabem mais conversar, convencer, castigar, rir, brincar não conseguem conviver, aconselhar e o mundo parece que tem só miliciano, traficante, bandido, gente ruim...
- Mas tem gente boa, no mundo. Eu acho até que tem mais gente boa que ruim.
Lá ia ela caminhar mais um dia da sua vida, lá ia ela encontrando seus conhecidos de bom dia, os passos marcados, a ideia fixa: Se uma semana faz tanta diferença pra nossa vida, quem sabe no ano que vem a gente começa a melhorar o mundo? Ao invés de “eu quero conquistar o mundo” a gente passa pra eu quero melhorar o mundo?
- Isso dá seguidores? Mas o que são seguidores, afinal?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Coisas simples”
Frio. Muito frio. Preguiça. Muita preguiça. Colocar dois a três pares de meias nos pés. Vestir 5 ou 6 peças de roupa no tronco. Umas calças quentes. Luvas, cachecol. Umas botas. Sair da cozinha, onde o fogão a lenha está a plenos pulmões, num ambiente super quentinho, não é algo que alguém deseja. Os vidros embaciados dão para fazer desenhos, até poesias, para quê ir para a rua, esse lugar inóspito? Escolher a porta de baixo do armário da cozinha é excelente para jogar às amêndoas – o jogo atrapalha um pouco os adultos, mas é muito legal. Colocar a lenha no fogão, tentando que entrem o maior número possível de pedaços, ouvir o vento por entre os pedaços de lenha quando começam a “carburar”, ouvir os estalos da lenha a queimar a todo o momento. O cheiro da lenha. O ar abafado, mas tão quentinho. Hum...
Os adultos movem-se muito rápido. Mexem as colheres nas panelas com fulgor e agilidade. Os sons da comida a borbulhar e os cheiros, tudo é extremamente delicioso. Alguém sempre prepara a mesa para o almoço, alguém sempre vai buscar lenha lá fora. Alguém sempre resolve a pia que pinga, a luz que falha, a comida que falta. Como os adultos conseguem? O frio me intimida e o calor me aquieta.
Os anos vão passando e eu começo a sentir vontade de fazer o que os outros fazem. Quero sentir o que sentem. Quero ser capaz de fazer o que fazem, para além do frio. Quando me ofereço para ir buscar lenha, me arrependo no segundo em que abro a porta. Mas sigo. Não posso não fazer. Também quero calor, também quero o fogão bombando, também quero tudo como quando era menina e via os adultos cuidando das panelas e do que era necessário para elas aquecerem e para elas se encherem.
O frio é tremendo no lugar onde está a lenha. Para piorar, um vento direto nas minhas mãos parece que me congela os dedos. De cada vez que escolho e pego num pedaço de madeira, parece que pego num pedaço de gelo. Tento encher bem e rápido o balde para ter de ir menos vezes, mas nunca dá certo essa matemática. O frio sabe consumir a lenha rápido.
Na hora que entro de novo na cozinha, a sensação de bem estar é indescritível. De início um ar abafado e muito quente me impede de respirar, mas depois, o corpo e a respiração se acostumam e esse calor voltando de novo é tudo de bom. Já tento ajudar na preparação da mesa para o almoço. Sei fazer quase tudo, só que ainda sou lenta em relação aos adultos. Sinto vontade de melhorar de cada vez. Quero contribuir. Não quero atrapalhar.
Um dia me dou conta que sou eu a adulta. A única. E o único ser humano naquela cozinha. O frio nem quer saber, pois continua implacável. As panelas, são menos mas exigem igualmente braços ágeis e velozes para não queimar o fundo, para não desperdiçar o calor da lenha.
Olho os vidros embaciados e lembro do tempo em que escrevia frases sem sentido, bonecos mal amanhados, e os adultos pediam imediatamente para apagar as belas “artes”. Olho as portas de baixo do armário, velhas e a precisarem de remodelação, e lembro dos jogos com amêndoas. Atirava a amêndoa contra as portas e o que atirava de seguida, tentava aproximar a sua amêndoa da minha. Se conseguisse, ficava com as duas amêndoas – a dele e a minha. Fiquei a conhecer os cantos do chão, dos armários e do fogão, com esse jogo.
Hora de ir buscar mais lenha. E bem rápido porque não tem mais ninguém para mexer as panelas do fogão. Meus filhos não querem nem ouvir falar em frio, em lenha, em campo. Não entendem o valor de um vidro embaciado nem das amêndoas.
Ana Santos, professora, jornalista
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