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2 Contos: “UMA LÁGRIMA PARA OS DONOS DA CIDADE” e “Pelo menos esta tarde...”

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 8 de fev.
  • 4 min de leitura

Isabel Meyrelles
Isabel Meyrelles

Conto “UMA LÁGRIMA PARA OS DONOS DA CIDADE”

- Oh Joge! Tu tá durmino, home?

Não poderia ser mais mal falado, mas em contrapartida, aquilo era lindo... Amava as palavras... Sentia a brincadeira, a preocupação, a amizade. Como era possível que alguém visse aquela intimidade sem se emocionar?

Era tão simples e tosco e, ao mesmo tempo, singelo e honesto.

Havia quem não visse, mas ela via. Tantos anos em escolas e estudos não lhe tiraram o apreço pela fala simples de um trabalhador comum.

Me olhou e logo exclamou:

- Dia, minha irmã! Deus abençoe!

E foi irresistível a resposta, mesmo com dúvidas sobre se víamos Deus da mesma forma:

- Amém!

A Bahia tinha disso. Você anda na rua e vê aquele olhar que parece ver além do seu corpo. Aquele que vai até o espírito, olha bem lá no fundo e muitas vezes diz:

- Teu pai é Ogum. Guerreiro...

- Tu é de Oxóssi. Caçador de mira tão boa, que anda com uma flecha só, sabia?

Do nada, alguém te olha, sorri e quando você espanta, já recebeu um abraço, um axé.

- Não ta achano casa, filha? Entregue a missão pra Oxumaré. Ele ta aí do seu ladinho.

E eu achei. Sem procurar. Em seguida de entregar a casa a Ele.

E eu, que tinha passado no meio de um tiroteio no Rio de Janeiro e que, ao contar meu caso não obtive atenção de ninguém - já que a minha era apenas mais uma história - aqui em Salvador, no meio da lavagem do Bonfim, ouvi isso de uma filha de Mãe Stela de Oxóssi – uma deusa. Caprichos da Bahia.

Mas...

- Tanta magia e ninguém quis ouvir que tem muita igreja que pode cair por aqui... Não foi falta de falar e não precisou da magia que sai pelos poros do povo que tantas vezes fala errado, mas que nunca erra no desejo de seu coração – que eles espalham pelo ar, todos os dias.

E a preocupação perpassa:

- Oh filha, quem sabe ocê não pega um cachorro pra levar pra passear?

- Minha irmã, pera que vou lhe dar um quadro que eu pintei.

- Eu vinha pra aqui e quis lhe dar um carrinho que está comigo há quarenta anos. Achei que ficava bem na sua casa...

Tanta gente subestimava aquelas pessoas... era tão imensamente difícil vê-las questionando a não audição dos políticos, por exemplo. A sua decepção, tantas vezes. Quem as poderia ver como eram? Sem menosprezá-las?

- Ah, o povo... Os donos da cidade somos nós – uma lágrima furtiva lhe escapou do controle naquela hora.

E despediu-se da pobre menina, vítima do desabamento do teto da igreja.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Pelo menos esta tarde...”

“Ora esta!”- diz Ana, para si mesma.

Enquanto lê um artigo da especialista Luísa Gaspar Pimentel, socióloga doutorada em Sociologia da Família e da Vida Quotidiana, sua cabeça repete as voltas e voltas que de vez em quando vão, de vez em quando voltam.

“Como é tudo tão bonito saído da boca de uma especialista. Como tudo parece tão perfeito nos outros e nas opiniões dos outros e nos nossos desejos.”

Recorda a conversa que ouviu entre um senhor viúvo e uma jovem mulher. Ela, criticando duramente o fato dele se ter afastado do filho e dos netos, de desperdiçar as pessoas, as coisas, o dinheiro, querer vender as casas menos a de campo, que a mulher amava. No fundo, o acusando de ser alguém miseravelmente egoísta. E ele lhe respondendo que só porque ela era uma pessoa sem família, sofrida, sonhando com famílias perfeitas, isso não significava que a vida e a realidade fossem tão perfeitas assim. Ter filhos, netos, primos, o que você quiser, não te dá um imediato certificado de vida perfeita, de oásis, de alcançar o pináculo da criação. E o senhor, viúvo e só, termina dizendo: “acorda menina, pare de sonhar”.

E também tem aquele casamento de um amigo que deixou a própria Ana nesse patamar de sonho. Ele lindo, ela linda. Os dois cultos. Ela estrangeira, vivendo em casas diferentes, comendo comidas atraentes. Ambos com filhos adultos, lindos e sorridentes. O sonho de Ana só aumentava. A comida, o lugar, a cerimônia, tudo totalmente fora do que ela vira alguma vez. Deixaram toda a vida que ambos tinham e partiram para um lugar novo, longe. Viu-os partir, seu coração ficou naquele momento. “Como a vida era tão linda quando se tinha coragem” – pensava ela. Passado algum tempo, as saudades a estimularam a enviar uma carta para os dois, cheia de frases de amor, de gratidão por lhe terem mostrado como a vida podia ser tão maravilhosa e perfeita, escolhendo o habitual ou o que ninguém escolhe. Sentiu-se muito feliz por ter escrito aquelas palavras, agradecendo muito aos dois por tudo o que plantaram em seu coração. Passado alguns dias, recebeu uma carta de resposta. Abriu, leu. Leu de novo. E de novo. Quem respondia não eram os dois. Respondia apenas o marido agradecendo todas as palavras generosas, mas que eram sem fundamento. Na verdade, os problemas eram imensos – de dinheiro, de relacionamento entre os dois e com os filhos de ambos. Lamentava estragar a imagem tão perfeita que lhe transmitiram, mas não podia deixar de lhe mostrar a realidade – não era certo deixar Ana naquela ilusão.

Continuou a ler o artigo daquela especialista perguntando-se se valeria a pena enviar um email a perguntar se a vida da própria senhora seria assim como ela dizia que deviam ser as famílias perfeitas e saudáveis. Valeria a pena? “Talvez um dia” – pensou. Agora não queria desiludir-se mais. Não queria mais saber a diferença entre o sonho e a realidade. Pelo menos esta tarde...

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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