Conto “TEMPOS DISTINTOS”
O tempo tinha passado tão rápido... De jovem a idosa, parecia que havia passado talvez uma noite, um piscar de olhos. Na TV, via que o Brasil não apoiava os ataques de Israel aos palestinos e que o Iêmen tinha sido bombardeado pela Inglaterra e Estados Unidos. Quanto mais a temperatura poderia subir antes de uma guerra regional explodir?
Sem que percebesse, seus olhos se esvaziaram do tempo presente e pousaram em outros mares, outros sóis.
O meu verão - onde o tempo parou - aconteceu em Saquarema, Rio. Décadas atrás. Tarde de verão. Quente. Aquele “sol maçarico” que só tem no Rio. Eu estava sentada na prancha de surf naquele marzão, esperando uma onda cheia se formar. Mas 2, 2 e meia da tarde, tudo o que todos sentiam era a preguiça das águas calmas, de depois do almoço, daquele sol quente. Carioquíssimo.
Olhei pra cima e o sol estava assim, um pouquinho na minha diagonal, à esquerda. Meus olhos apenas “boiaram”, preguiçosos e, de repente, lá estava ela – a minha sombra – à direita. Por algum motivo, olhei também para a esquerda e lá estava ela, de novo – a minha sombra.
- Ué...
Firmei a vista e a mancha escura à esquerda era uma arraia enorme. Tirei a perna esquerda da água devagar e a coloquei em cima da prancha, morrendo de medo. Não podia remar. Apenas fiquei ali naquele tempo sem tempo, em Saquarema, olhando fixamente pra aquela gigante que boiava do meu lado, até que, do mesmo jeito que veio, se foi. Calmamente. No marzão de Saquarema.
Ser feliz era sentir aquele frio na barriga e eu ainda nem sabia...
Desliguei a TV. Minha barriga tinha calafrios tão mais perigosos que uma arraia agora... O mundo cheio de lunáticos poderosos, bombas atômicas soltas, à vontade, sob a tutela de governos nem um pouco racionais, nem um pouco generosos. Subiu a escada devagar. Estava calor demais. Abriu a porta da rua e foi imediatamente ofuscada pela luz de Salvador. Piscou, procurando uma sombra e sua memória a levou de novo pra um momento onde o mundo era um rabo de arraia e o medo tinha menos de 20 anos... Bons tempos...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Soluções”
De novo aquela situação. Era muito frequente aquilo acontecer. Eram muitos. Tinham uma convivência muito próxima. E eram muito diferentes uns dos outros. Sempre havia alguém que se chateava e que procurava alguém para discutir. Não se sabia bem o que levava a esse lugar porque de cada vez era diferente, mas surgia sempre alguém que estava mais aborrecido com a sua vida e bastava uma voz mais alta, uma frase menos correta, uma comida mais salgada, um sorriso mais provocante, um dar de ombros para tudo começar. Um arrufo, seguido de uma discussão quente, de um convite para a pancada, numa vontade de vencer o mundo ou derrubar o mundo – como se não houvesse mais nenhuma escolha. Anos e anos nisto. Décadas. Quem olhava de fora não entendia nada porque parecia que os antepassados tinham conseguido erguer uma família digna que eles tinham prazer em destruir. Só porque queriam, só porque não gostaram de uma palavra, de um olhar. Décadas de construção, gerações de esforços, sacrifícios, dores, que implodiam a olhos vistos. Vários especialistas fizeram avaliações, observações, entrevistas, terapias, tudo o que pudesse contribuir para ter as informações necessárias e chegar a um resultado. E desse resultado, chegar a uma solução. Mas eram muitos. Demasiados. Esse processo demorou muitos anos. E os especialistas foram percebendo que as informações seriam muito complicadas de analisar. Era um mundo de relações inextricável.
O chefe dos especialistas, sempre que ia para casa, tentava encontrar a solução em outras situações. Tinha um filho, Teo, que amava desatar nós. Quando o observava percebia que no início Teo ficava inquieto e nervoso, por vezes até com vontade de desistir. E era perceptível o momento em que Teo ficava nessa zona “vermelha”, em que quase desistia mas que, ao relaxar as mãos, dar folga nas linhas, uma das linhas mexia e começava a travessia alegre de desatar todos os nós com tranquilidade e sorrisos. Teo começava assustado com aqueles nós todos, depois entusiasmado por estar a fazer o que gostava, depois com vontade de desistir porque dessa vez parecia impossível e, finalmente, após baixar sua tensão e pressa, uma linha ficava mais frouxa e a solução acontecia.
Tinha outro filho, Aki, que amava brincar com o cachorro, Pluma. Sempre que Pluma não fazia o que Aki pedia ou queria – porque não entendia a linguagem dos humanos e Aki não sabia que ele não entendia – Aki gritava e acompanhava os gritos com gestos agressivos de ameaça. Pluma achava que Aki estava brincando e desobedecia mais ainda ao pular e rebolar de alegria. Aki cada vez gritando mais e gesticulando como um ditador e Pluma amando a brincadeira estranha. Só tinha uma forma desta parafernália terminar – Aki ir estudar, algo que ele detestava.
O chefe dos especialistas ficava ainda mais confuso com estas situações e dormia com dificuldade preocupado em encontrar a solução para o seu trabalho e para os filhos – Aki em particular.
Um dia a mulher disse-lhe que tinha conhecido um senhor no ônibus que lhe ensinou uma palavra nova.
- Qual palavra? – perguntou ele curioso.
- Compaixão.
Ana Santos, professora, jornalista
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