
Conto “DOR DE COTOVELO NACIONAL”
Ele parecia um pouco com o “Alberto Roberto” – velho personagem de Chico Anysio. Exagerava nas doses de “inter-pe-re-tação” em qualquer coisa que fizesse. Até “batucando na mesa” ele era over.
Um dia – e todos sabíamos, ia acontecer – ele fundou seu grupo de pagode e sábado sim, outro não, lá ficavam eles “solando” o toque do cavaco enquanto criavam competições de letras de músicas.
Na verdade, pensava eu – ninguém parecia interessado em escolher a melhor música porque todos queriam mostrar unicamente a sua. Eram então encontros de muitas músicas isoladas, já que ninguém pensava no público; talvez o melhor termo fosse que todos usavam o mesmo público.
“Você ‘to-ro-cou’ meu amor e deixou lá uma dor”, coisa mais ‘ti-ris-te’ você fazer chiste de mim, assim, mas eu não vou te ‘po-ro-curar’, vou te deixar “sempe-re” longe de mim...
- Que dose...
Os finais de semana “sim e não” se sucediam e nada mudava. Ninguém tinha coragem de dizer que todas as músicas eram ruins porque eles nem tentavam melhorar. A cerveja amornava e nada mudava, de chatice em chatice.
No meio do pagode, alguém se levanta e pergunta onde estava o ritmo porque aquilo estava demais. Todos se entreolham, mas ninguém tem coragem de falar.
- Que pagode ruim é esse, gente?
- É de fugir!
Lá na madrugada, depois de muito sofrimento com os “Paralelos do ritmo”, “Unidos do não quero nada” e “Pagodão do Ferreirão”, surge um gringo bem simples, de bermuda e camiseta que pediu pra cantar e trouxe um pagode lindo, bem ritmado, com uma banda decente.
Não ganhou prêmio nenhum, mas levou o coração da galera, que dali em diante pedia pelo som do “Luz da Noite” todo dia de festa.
Nada de tentar aparecer. O negócio de todos era divertir a moçada e tirar uns trocos pra cerveja da semana.
Fizeram o maior sucesso. Ninguém mais se lembrava do “Você ‘to-ro-cou’ meu amor e deixou lá uma dor”, coisa mais ‘ti-ris-te’ você fazer chiste de mim, assim, mas eu não vou te ‘po-ro-curar’, vou te deixar “sempe-re” longe de mim...
Ganharam fama e dinheiro, mas nunca esqueceram o pessoal. De tempos em tempos apareciam no pagode, tocavam seus sucessos e inspiravam os mais novos a cantar.
No resto do pessoal sobrou aquela dor de cotovelo bem brasileira, regada a cerveja, batata frita e pagode bem dançado porque a voz do gringo dava gosto na moçada...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “A profissão perfeita”
Ana pega no celular para pedir uma pizza na pizzaria “Tudo em Casa”. Está muito cansada, está na hora de jantar, os miúdos amam e ela não tem energia nem vontade de fazer uma sopa de legumes e um peixe grelhado. Trabalhar muito mais de 8 horas diárias no seu restaurante, cozinhando todo o tipo de pratos super elaborados a deixa exausta. Ela ama o que faz, ganha o suficiente para dar uma vida confortável aos filhos, dá para guardar dinheiro para o futuro, mas o colesterol das crianças está alto, o dela também e precisa pensar em mudar. É confuso alimentar os clientes com comidas incrivelmente saudáveis e não ser capaz de o fazer com a mesma regularidade em casa. Quem sabe talvez comece essa mudança no início do ano. Agora nestes meses de julho, agosto e setembro as crianças estão de férias, sempre se come mal e depois inicia a escola e não os quer estressar mais com regras alimentares.
Tem pensado em pedir ajuda ao Sílvio, seu grande amigo de todas as horas. Ele é psicólogo, um baita psicólogo. Ela acha que o Sílvio a podia ajudar a organizar essa mudança de comportamentos e quem sabe até consegue desabafar algumas questões pessoais. Mas ele lhe falou que anda mal, deprimido, com fobias, os traumas da infância voltaram com toda a força e passa os dias a ruminar. Pediu-lhe um tempo, mas já lá vão uns 4 anos.
Entretanto quer começar a fazer academia para retirar o peso em excesso que está aparecendo na menopausa. Olha-se no espelho e vê que adquiriu, além de peso, um corpo mais balofo, mais inchado. Parece que tem ar dentro de si, ou será água? Porque dizem que tem líquido. Mas a Mariana, sua vizinha, treinadora olímpica, diz que academia não dá, que precisa de escolher outra coisa. E ela está num impasse. Adora academia e a Mariana não a ajuda se ela quiser ir para lá. E a Mariana é rígida e fria a falar de horas, circuitos, pausas, intensidades. E ela que só quer relaxar correndo na esteira, tal qual um Hamster, olhando a novela na TV.
Às vezes a Ana acha que o mundo está ao contrário. O Tiago, seu amigo arquiteto, casado com a Maria, engenheira, foram viver para um casebre na montanha e agora só os vê uma vez por ano. Não querem nem ouvir falar em cidades, prédios, concreto/betão. Queria tanto que eles a ajudassem na reforma do telhado, na mudança de um quarto em dois, para os filhos terem um quarto para cada um, mas nem querem ouvir falar nisso. Dizem sempre que trabalho é trabalho mas com os amigos é amizade. Vai ter de fazer tudo isso com o pedreiro João, que é careiro, tosco e não entende nada de nada – tem de ser ela a dizer tudo.
Não sabe como vai ser o futuro dos filhos, profissionalmente falando. Teme que todas estas influências de pessoas à sua volta, fazendo uma coisa profissionalmente e com pensamentos e comportamentos opostos, crie uma enorme confusão na cabeça deles. E também, não adianta falar nada sobre profissões e a maravilha de cada uma porque já não “cola”. Não acreditam no que fala. Eles vêem o pessoal adulto à sua volta, eu incluída, e acho que não vão querer nada parecido com o que fazemos. Nem com o que somos.
Um destes dias vi a Joana minha filha mais nova a brincar com uns arcos. Gostei. Ela tem jeito. Mas quando lhe disse que não esquecesse de fazer as tarefas da escola, ela falou: “Mãe, eu decidi que no futuro quero trabalhar no sinal, fazendo habilidades com arcos. A pessoa mais feliz que conheço, a que sorri mais vezes, a única que me olha quando passo por ela, é a menina argentina que fica no sinal do Bairro dos Barris, fazendo habilidades com arcos. Preciso treinar para ser boa. Daqui a pouco, quando terminar o que realmente importa para mim, vou fazer as tarefas da escola.”
Ana Santos, professora, jornalista
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