Conto “PRESENTE!”
- Há muito tempo atrás, antes da peste, as crianças aprendiam de muitos modos diferentes, disse um dos mentores infantis aos seus aprendizes.
Ainda quando pequeno ele tivera a experiência de estudar numa “escola” e tinha colegas de carne e osso – muitas vezes, quando saía briga na aula, eram mesmo carne e ossos embolados no chão do recreio.
Agora, as telepresenças nas aulas não tinham a mesma emoção. Na verdade, nem se sabia mais se os alunos ali estavam ou se plantavam hologramas caras pra engabelar os mais bobos. Na verdade, os professores tinham aplicativos que buscavam hologramas e também trechos copiados, colas e também o criativo, a inteligência pura. Para cada lado do que dizia o App, uma decisão: muitos de seus alunos eram absolutamente criativos, mas engraçado – os melhores tinham recebido educação antiga, daquele tipo que ainda possuía brincadeiras de verdade, pessoas ao redor, histórias. Poucas famílias existiam assim. Na sua experiência, as mais pobres. Era um momento do mundo onde o dinheiro tinha comprado tanto que as coisas compráveis tinham perdido o valor, já que os princípios éticos, a coragem, a nobreza de caráter tinham ficado para aqueles que nunca tinham tido acesso à indicações políticas e influências digitais, ou seja, os mais pobres. Eles não tinham dinheiro, mas brincavam, liam, conversavam. Portanto tinham e podiam aprender, sem muitos substitutos a comprar. Podiam e aprendiam... a agir!
Nas outras camadas sociais, não havia inspiração porque elas não se compram - e pra piorar, cada vez que os pais ricos tentavam comprar valores, eles se corrompiam. Eles tocavam... e mais um valor se estragava. Os meninos ricos eram totalmente estúpidos! Não sabiam pensar, queriam apenas saber “o que era pra fazer”. Ouvia essa frase mil vezes por dia e respondia sempre: Pensar! – Como se pensar fosse uma coisa que nascesse com as pessoas como um bater de coração – Não!
Um dia, lá estava ele fazendo coisas antigas – adorava caminhar. Ia passando por um antigo calçadão onde durante séculos as pessoas andavam de bike – sabe bike? Bicicleta? Uma coisa antiga de duas rodas que a gente pedalava. Não, não voava! Apenas as duas rodas tocavam o chão e a gente tinha a sensação (com aquele vento) que era mais livre do que nunca.
... ...
Deixa pra lá, vai. Bem no meio do passeio, uma voz o enlevou ao céu. Dizia: Presente, professor! Ele olhou e viu uma menina ricamente pobre – se via pelo brilho nos olhos. Lá estava a velha curiosidade, o ar brincalhão, uma menina que parecia com ele, naquele tempo em que as pessoas tinham reações humanas e humanizadas.
Ele sorriu e lhe deu uma piscada. Isso ela não sabia o que era! Oh! Ela piscou de volta! E saiu brincando com ele pela calçada e falou sobre seus avós, árvores e frutas.
Ele teria encomendado uma fantasia e esquecido disso? Mas nem conhecia aquele rosto, como era possível?
Bem, ele precisava ir para seu telão, sua tele aula e aqueles alunos simploriamente ricos, sem princípios, sem história e sem vida. De que adiantava tanta tradição, se não havia história e conhecimento passado de geração em geração?
- Boa tarde, disse sem esperança. Quase caiu duro quando uma das telas se iluminou e alguém respondeu – boa tarde, professor! – era a menina!
- O que você faz aqui? – Ele estava iluminado de alegria.
- Sou bolsista!
Seus ricos alunos medíocres, nem tinham mais tanto vocabulário. Não sabiam brincar com o olhar, não tinham perguntas a fazer. Compravam respostas prontas e pré-moldadas online.
- O que vocês sabem sobre a Grécia Clássica? E no meio do silêncio catatônico de sempre, a luz: – Tá falando do tempo de Hércules? Ou era Héracles? Se era o mesmo herói, por que tinha dois nomes diferentes?
Mágica... os valores perdidos... as perguntas de novo!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “ O Professor e a Criança”
Ana é uma criança feliz. Nossa, como ela é feliz! Não tem luxos materiais. Tem o suficiente e está tudo certo. Liberdade e alegria. Campos para correr, rios para nadar, irmãos e amigos para brincar, uma família que a protege e cuida, livros para ler e sonhar. A vida é um conjunto de atividades e experiências que a deixam com boas sensações, com o olho brilhando, com o pensamento inundado de sonhos e desejos. No final do dia o corpo cansado e realizado. Sempre muitas brincadeiras, tarefas realizadas, experiências novas, desafios concretizados. A vida é uma travessia enriquecedora, desafiante, alegre, entusiasmante. Em tudo e em todos Ana vive liberdade e alegria.
Quer ser sempre assim.
Quando começou a ir para a escola, o mundo sério e dos adultos avisou – precisa pensar no futuro, no que quer ser, no que quer fazer da sua vida, onde viver, com quem, quantos filhos, como ganhar dinheiro, como ser uma profissional competente e de sucesso. Em ser gente. E pensar em reduzir essas brincadeiras lindas e fofas porque podem atrapalhar. Tanta coisa diferente. Ana acha tudo muito estranho mas se é assim que tem de ser, vai tentar fazer bem feito.
Aprendeu muito na escola e amava isso, mas também aprendeu a ser mais controlada, mais obediente, mais disciplinada. Não podia rir nem brincar na sala de aula, quando chegava em casa ia com muita vontade de brincar mas também não podia fazê-lo na hora de almoçar, de jantar. E restavam os tempos para fazer seus deveres de casa e de escola e nesses momentos também não podia brincar. Todo o tempo de brincadeira, alegria e liberdade foi ocupado pelo tempo escolar – obediência, controle, disciplina.
Com os anos foi percebendo que quanto menos brincava, mais as pessoas gostavam dela. Seriedade, cumprir tarefas nos prazos, trabalhar sem sorrir, poucos tempos livres, poucas férias, ambição profissional, financeira e familiar. Isso era ser gente, ser alguém, ser respeitada. Era apenas outra fase da vida. Uma infância feliz tinha sido uma benção e agora precisava ser capaz de seguir as novas regras. Se é assim, se tem de ser assim, Ana vai tentar ser boa.
Ana se tornou professora. Sem dar conta se tornou uma adulta que tirava a alegria e liberdade das crianças. Contente por poder ensinar tantas coisas importantes, não percebia que fazia com eles o que fizeram consigo – tirava a liberdade e alegria e lhes ensinava a obediência e a postura séria.
Ana procura nos livros sem parar mas ainda não achou. Ana procura nas pessoas mas não vê isso em ninguém. Ana procura no mundo mas não encontra em lado nenhum. Ana não encontra a resposta nem fora nem dentro de si. Ana parou na vida. Seu corpo vai trabalhar todos os dias, cumpre as regras, as tarefas, as obrigações. Mas Ana não vai. Deixou de ir. Deixou de estar. Deixou de ser. Passaram 40 anos. Ana vai finalmente ter direito à sua reforma / aposentadoria. O grande prêmio da vida. O grande feito como pessoa. Sente esse momento como se fosse o momento de receber um diploma por bom comportamento na escola. Mas já não tem os pais presentes, os irmãos, os amigos da escola, para ela os olhar orgulhosamente aplaudindo seu feito. Já não vai ter direito a uma fatia de bolo de chocolate e a uma ida ao circo, que ela tanto amava. Ganha o prêmio que o mundo indica como certo. Sente-se realizada. Afinal a liberdade e a alegria não lhe fizeram falta. Só lhe iam complicar a vida.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments