Conto “SEM COMPAIXÃO”
Todo mundo discutia sobre a decisão do jogador de não se vacinar. Ela rolava o scroll do celular e a conversa vinha de todas as direções: “Eu medito e tomo vacina”; “Eu juro que vi o fim do planeta, quando quase pulei da Terra plana”; “Eu sou espiritualizado e forte o suficiente para não tomar vacina nenhuma”.
- As pessoas são mesmo incompreensíveis... ela pensou. Como alguém de tanta projeção pode ser totalmente egoísta ao autoproclamar-se livre da possibilidade de pegar um vírus (como se isso fosse possível), num momento onde as crianças é que estão sendo atacadas? Num mundo onde parte das pessoas não têm acesso à informação que seja suficiente para entender o que leu? Entender apenas o que quer dizer aquilo que alguém escreveu e que, portanto, está escrito, guardado no que é um livro...
As pessoas ainda não tinham entendido que a discussão não poderia partir delas individualmente e sim do coletivo que nós somos. Era de aquário, ano de Mercúrio... coletivo, direito para todos... não.
Correndo o scroll, ela se perdeu em recordações: Há muitos anos – muitos, mesmo – ela, naquele momento vegetariana (nem existia a palavra veganismo), percebeu que, morando no sul do Brasil, atrapalhava a cultura, o estado de ser, a percepção de saúde das pessoas, apenas por não comer carne porque elas não alcançavam nenhuma justificativa possível. E voltou a comê-la. Criou uma norma possível: Não deixava as crianças matarem nenhum passarinho. E isso deu certo. Pelo menos dentro de seu coração.
Agora, milhões de pessoas já tinham morrido daquela doença – mais do que em guerras mundiais. Mas, com um pouco de compaixão de todos, por amor, poderiam ceder e se vacinar pelo bem do mundo. Não pra se preservarem puros ou fortes ou espirituais porque a maior espiritualidade é necessária para o mundo, para viver, para não morrer, para dar o exemplo de cuidar, de fazer algo que tenha um valor e que sirva de exemplo.
Na TV, aquele presidente que ela apenas suportava - e tinha que suportar porque ninguém afinal o tirou dali - criava desconfianças e suspeitas sobre vacinar crianças, que estavam morrendo também – claro que o super astro do esporte nem sabia da nossa existência no mapa, mas o mau exemplo estava ali porque a atitude era a mesma. Mas isso, de uma maneira estranha, as pessoas não viam, não comparavam, não desconfiavam poder ser um egoísmo disfarçado de saúde, espírito, equilíbrio.
Bem... ela tinha as 3 doses tomadas e estava feliz, finalmente. Feliz, pelo todo do qual fazia parte – 7 bilhões! Era muito e ela tinha feito a sua parte. Não importava se era inverno ou verão – ela estava sempre mascarada, vacinada e pronta! O tenista, com milhões de dólares disponíveis, tentava comprar a justiça e deixar para seus filhos, a ideia, na história, de sua impiedade e teimosia.
A discussão continuava! Fervia. Ela aqueceu seus legumes e, em homenagem ao coletivo do qual fazia parte desde que nasceu, colocou dois ovos fritos no prato também.
- Somos um grupo sem juízo, mas afinal, ainda somos um grupo! E mastigou sua torradinha com legumes e ovos com apetite.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Sonho? Realidade?”
Dormir. Acordar. Sonho. Realidade. Qual a diferença?
Ana adora dormir porque os sonhos, mesmo que por vezes confusos, não lhe doem. São loucos, estranhos ou até, belos e perfeitos, mas o sensacional é que não têm contas para pagar, não têm dívidas, não têm mortes, não têm maus tratos, nem sofrimento, nem vergonha, nem humilhações. Ali ela é feliz.
É comum acordar mais cedo do que a hora, com o despertador, para poder terminar o sonho e para ter aquele momento sereno ao fechar os olhos de novo. Nem que seja mais 5 minutos. Na sua vida real, desde que se levanta, tudo é difícil.
Pela manhã, preparar os filhos para a escola. Um menino e uma menina, pré-adolescentes, que começam a exteriorizar a agressividade que sofreram com o pai, que está na prisão por se ter envolvido em tráfico e droga. Também são adolescentes frágeis e que facilmente adoecem, tudo decorrente da pobre e escassa alimentação. Crianças sofridas, tristes, desajustadas, perdidas. Leva um dia de cada vez, tentando que algum milagre lhes aconteça, porque não tem tempo para se dedicar a eles e nem sabe como lhes dar uma vida melhor, como resolver todos esses traumas. O tempo é todo para se agarrar aos empregos que conseguiu milagrosamente.
Tem dois longos trabalhos, todos os dias. De manhã trabalha 6 horas na casa de D. Ricardina. Trata da comida, das roupas, da limpeza, do jardim e cuida da senhora que já está com algumas incapacidades – 8h às 14h. De tarde – 14h às 20h, trabalha na casa vizinha da D. Ricardina, a casa da Senhora e do Senhor Oliveira. Basicamente a mesma coisa: comida, roupas, limpeza, jardim. Gosta muito de ambos os patrões. Pessoas doces e que a respeitam. Mas é bastante trabalho. Nos finais de semana, o trabalho aumenta bastante porque estão os filhos e os netos. Mas é com esse dinheiro que vai vivendo, sempre a correr atrás das despesas: da casa, da escola, das roupas e da saúde dela e dos filhos.
Quando chega em casa nem tem tempo de se dedicar aos filhos porque tem roupas para lavar à mão, tem comida para fazer para o jantar e para o dia seguinte e rápido é hora de descansar para o novo dia.
Deitou. Mais um dia terminado. Fecha os olhos e mergulha em busca da sua liberdade, em busca da felicidade, da leveza, nos seus sonhos. Desta vez sonha que os filhos aparecem no seu quarto e lhe dizem:
- Mãe, lembra daquele dinheiro que pedimos para uma visita de estudo da escola? Pedimos mais um pouco à senhora e jogamos no Euromilhões, com dois euros e meio. Queríamos dizer à senhora que ganhamos o primeiro prêmio e parece que ganhamos o suficiente para a senhora trabalhar menos, para comprarmos uma máquina de lavar roupa, talvez para mudar de casa. Queríamos lhe dar o dinheiro e pedir que nos ajude a ter uma vida em que a senhora esteja mais tempo com a gente. E nos ajude a consertar tudo que está “desconsertado” nos nosso dias. Pode ser mãe?
É de manhã. Ana acordou confusa com este sonho. Nossa, como parecia real. Olhou o despertador e percebeu que ainda era cedo. Do lado do despertador tinha um bilhete dos filhos. Abriu e começou a ler:
- Mãe, lembra daquele dinheiro que pedimos para uma visita de estudo da escola?
Ana Santos, professora, jornalista
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