Conto “RESTA È L’AMORE”
- Tu te desmícia fora o no? (Você quer ir embora ou não)?
Uma menina ruiva, pequena, falando em italiano, com bochechas sardentas e olhos azuis. Sim. Parecia uma boneca mesmo. Para cariocas, acostumadíssimos com a miscigenação do Brasil, ver uma ruivinha era raro. Na verdade, raríssimo. Seu irmão, tinha bochechas vermelhas e olhos azuis, falando com aquele sotaque fofo e inconfundível:
- Eu tento, mas ela me escapa! – Referindo-se a uma amiguinha que os adultos queriam que ele “namorasse” com talvez uns 5 anos.
Quando todos se juntavam ao redor do macarrão de domingo, a alegria ia longe.
- Filho, olha a gula...
- Ma Senhor, olha a massa!
E era assim, de brincadeira em brincadeira que ela conviveu com pessoas totalmente diferentes, de costumes diferentes, mas maravilhosamente deliciosas.
Engordou, claro. É impossível passar pela zona italiana, no Rio Grande do Sul, sem comer além da conta.
- Ma que fiaca, que magra! No, no. Manja, vá. Manja que te fá bene.
Lembrava de cenas inteiras, mesmo depois de tantos anos. Por isso ver a cidade que a acolheu ser atingida pelo caos, estava sendo duro. Estava acostumada a lembrar da natureza, da serra, dos pastos. Do dia em que jogou Beti e Pete pelo vão da cerca, fugindo de um touro e se arrastou por baixo do último fio de arame pra não tomar uma chifrada - ou quando o galo saiu correndo atrás dela.
- Muitos anos... Numa época onde clima extremo era um termo inexistente, onde não havia tanto leva e trás de mentiras e pessoas que preferem vencer uma discussão a salvar vidas.
O Rio das Antas, que passava sempre tão lá embaixo, agora estava rente à pista. As montanhas com cicatrizes de barreiras caídas, sangravam lama. Imaginou se ainda haveriam as hortências na beira da estrada ou se todas teriam sido tragadas pela natureza furiosa. Não haveria também “el vechio” italiano com pregos no bolso para enterrá-los na terra e mudar a cor das flores.
Havia ali a plenitude da dor e da perda. Recordações e saudades de momentos e pessoas. O tempo presente era apenas lembrança e união de todos, num país que estava fraturado até precisar se unir para salvar pessoas, cachorros, gatos, cavalos, porcos, cidades inteiras, trocar aquelas tristezas todas por uma mamadeira de leite com Nescau adoçadas por lágrimas furtivas.
Amanhã seria outro dia. Amanhã, “minha Beti” voltaria a ser Betina, a adulta e o “Petele” teria seu nome de batismo de volta, mesmo que ela não soubesse mais dizer qual era. Em seu coração eram crianças deliciosas.
As crianças de agora, de hoje, viviam em cima dos telhados com pais e mães desatinados de frio e lágrimas secas, separados por lanchas, pela morte, águas barrentas, pela vida. Mantinham os olhos firmes na salvação que vem e continua vindo porque ninguém pode parar de sentir essa dor conjunta, senão o Brasil deixa de ser Brasil, se perde de si mesmo e de sua generosidade.
- Que cosa fare?
- Niente, bela. Viviamo un giorno dopo l’altro.
Isso vai passar. O que fica é o amor que podemos dar a todos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O que é vazio precisa encher”
Você precisava ver aquela menina. Ana era a energia do mundo. Refilona, chorona, grossa, mas não existia um problema que ela recusasse enfrentar. Se existisse algum problema, pode acreditar que Ana estava presente. Não foi presenteada por grande beleza, seu jeito rude de falar não ajudava, mas as pessoas mesmo assim, contavam com ela para tudo. Valia a pena aguentar aquele pedaço de “jaca”, pois em contrapartida sabiam que teriam ajuda de todo o gênero – dinheiro, carona, dormida na sua casa, comida, amigos e conhecidos que apareciam de todos os lados quando ela os chamava.
Nunca foi muito estudiosa, mas os pais sempre encontraram uma forma de ela ir avançando. Quando as suas notas na escola começaram a dar problema, silenciosamente a família resolveu o problema. Esteve uns anos nos colégios conhecidos por atribuírem notas altas com facilidade e lá conseguiu terminar. Via-se que não gostava de estudar, que não tinha interesse nenhum naquele mundo. Por isso a surpresa foi grande para todos quando se soube que ia para a faculdade. Faculdade privada, claro. Novamente os pais pagando a entrada, a estadia e o diploma. Fez um curso de poucos anos, fácil, e pronto – virou doutora. Era estranho olhar para ela e tratá-la como doutora, mas os pais faziam questão e ela também. A grosseria juntou-se à vaidade de ter (ou comprar) um diploma, o que tornou a relação com ela mais difícil, mas como continuou a ajudar as pessoas, a vida foi seguindo. Ninguém sabe – mas imagina – como ela conseguiu os seus empregos, mas eram vários e bem pagos. Começou a aparecer com carros cada vez mais caros, a adquirir cada vez mais apartamentos e casas. Férias, só em lugares badalados. Aos poucos começou a ser cada vez mais difícil estar perto dela porque deixou de ajudar as pessoas e a grosseria e vaidade aumentaram enormemente. Casou, teve vários filhos. Foi tendo empregos cada vez mais poderosos. Rica, poderosa e muito grossa – era esta a imagem que todos tinham dela.
Seu destino, parecia traçado. Mas aquele homem com quem casou foi, aos poucos, mudando esse destino. Era especialista em medicina oriental, em ervas, em homeopatia. Ana, achou engraçado experimentar as comidas e bebidas que ele fazia para os filhos. E, à medida que foi se sentindo mais calma, mais serena, mais tranquila, foi comendo mais e mais daquelas comidas. Seus filhos eram uns doces. Foram aprendendo com o pai a alimentarem-se, a cuidarem das plantas, a ouvir o seu corpo, a apreciar a vida em geral. Os professores na escola começaram a pedir para eles levarem o pai para ele ensinar outros meninos, e seus familiares a lidarem melhor com os alimentos, com seu corpo.
Aos poucos a população da Vila foi ficando menos vezes doente, melhorando seus comportamentos, diminuindo as brigas, os acidentes de trânsito. Diminuíram as consultas por doença e aumentaram as consultas para fazer apenas exames de rotina. Diminuíram tanto as vendas de medicamentos que bastava uma farmácia – as outras 5 fecharam. O marido de Ana foi convidado para ser o Prefeito da Vila mas recusou. Todos ficaram muito surpresos. Afinal ele não fez aquilo tudo para ter poder, sucesso, ser o melhor de todos – o Prefeito da Vila? Afinal não. Aproveitou esse convite para pedir para gerir, com seus filhos e todos os que desejassem contribuir, todos os terrenos em volta da Vila, para pedir que impedissem mais construções de imóveis, para pedir que impedissem a entrada de mercados de redes internacionais. E assim, a Vila conseguiu equilibrar o que produzia com o que consumia, com suas plantas, verduras, legumes, frutas, peixes do rio e do mar, animais que cresciam livres nos campos.
Ana, que pensou casar com aquele homem por ele ser bobo e dessa forma, ela poder fazer a vida que queria, acabou por perceber que ganhou a megasena. Melhorou a sua própria saúde, seu próprio comportamento, sentia-se mais feliz, menos irritada com o mundo, com as pessoas. Os problemas não a deixavam mais com falta de ar. Foi diminuindo a quantidade de empregos que tinha, foi perdendo a vontade de ter poder através do dinheiro e das posições profissionais que obtinha. Tinha algo naqueles chás, naquelas saladas, naquelas refeições cheias de sorrisos e paz, que ela não trocava por nada.
Ana agora passava os dias conversando com o marido e com os filhos, organizando uma forma de conseguir introduzir esta vida nos pais e nos amigos, todos pessoas irritadas com tudo e com todos. Tinha de os tirar daquele buraco...
Ana Santos, professora, jornalista
Comments