Conto “O FIM DA OSTENTAÇÃO”
Sua vida estava nas redes sociais de cabo a rabo. Ele precisava ostentar. E de um tudo: a ida ao shopping, o almoço, o namorado, os problemas com o término do relacionamento passado, seus preconceitos e mentiras. Todas as fofocas eram feitas ali também. E fofocas acadêmicas! Quem era de esquerda logo virava comunista, os alunos não queriam mais estudar, só fazer política, fulana com sicrana, fulano com sicrana – tudo era contemplado com pelo menos um comentário ácido.
Tinha uma amiga que lhe dizia que as pessoas precisavam de alguma privacidade, que ele também, mas nada: o sorriso amarelo não depurava aquilo e, portanto, tudo acabava nas redes, até a “amiga chata que punha defeito nas coisas que ele fazia”.
Um dia, num checkup, o médico pediu-lhe uma colonoscopia e uma endoscopia juntas e a partir daí havia pelo menos um assunto a se evitar nas redes: o checkup.
Passam os dias, o exame vai chegando, a preparação, os inúmeros documentos, a dieta, a insegurança, os remédios. Foi-se retirando das redes para fazer frente às exigências e veja só: gostou da privacidade, de não ser obrigado pelo tal motivo social secreto, que fazia com que todos postassem coisas ininterruptamente.
De uma certa forma sentia-se cada vez mais livre. Tinha menos energia, já que não podia comer quase nada, mas ao mesmo tempo, planejou-se todo, tinha tudo pronto, sentia-se bem e feliz. Passou a se perguntar que motivos o levavam a ostentar sua posição – mesmo que fictícia tantas vezes – nas redes sociais. Tanta gente tinha fome e ele fotografando a comida quente para comê-la fria; tanta gente com graves problemas financeiros e ele fotografando os tênis que fingia comprar ou as roupas que nem precisava – tudo para criar a ilusão de que era quem não era.
- Ao fim e ao cabo, todos nós temos que fazer xixi e cocô, não escapamos dos gases... Tentamos nos diferenciar, mas as nossas humanidades nos igualam...
Olhava fixamente para aqueles caldinhos de cenoura, batata e chuchu sem tempero, enquanto os passava na peneira:
- Hummm... como me saciam a fome... São antissociais, ninguém os quer fotografar, mas eles é que me garantem estar de pé.
Ali, passando legumes na peneira, em pé em frente ao fogão, nascia um homem diferente. Mais simples, mais consciente de sua humanidade, mais afeito à convivência com os vizinhos. Nada de poses, gestos públicos ou presepadas - apenas um homem, dois exames complexos, dietas e uma busca pela igualdade do arroz e feijão, agora proibidos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Quanto vale um sorriso?”
- O que é uma pessoa boa? E para que isso serve, Maria?
- Evilásio, é importante ser bom.
- Ai Maria, não tenho jeito para ser boa pessoa.
- Não é jeito moço, é esforço.
- Esforço? Você vem com essa de esforço para mim, Maria? O que eu faço desde que acordo até que me deito? Passear? Minha vida é esforço, trabalho.
- Evi, fique calmo. Eu estou falando de outra coisa. De ter mais sorriso e menos má vontade e cara fechada com as pessoas.
- Sério isso, Maria? Você quer então que eu seja como a senhora que nos serviu no restaurante? Toda sorrisos, toda sorrisos e o que aconteceu? Nos amoleceu com gentileza e pagamos por um almoço o preço de uma bicicleta que íamos comprar para o filhão. Nem fale mais nessa “simpática” senhora. Estou cheio de gente simpática.
Saiu da conversa, saiu da cozinha, foi espantar o nervoso enquanto colhia aipim para vender.
Maria ficou em silêncio. No lugar que estava, ali ficou. Sabia que ele tinha razão, mas sabia também que a grosseria não seria boa para eles nem para os negócios instáveis deles. Vender aipim, batata doce, inhame não era mais para uma pequena família com um pequeno terreno. Em sua volta era impressionante a quantidade de terrenos e de máquinas monstruosas que faziam tudo pelos humanos e as quantidades de colheita eram absurdas, comparadas com as que eles colhiam. O pior era que os donos dessas terras que os rodeavam, faziam o mesmo. Sorriam, sorriam muito, eram muito gentis com os dois, com os filhos deles, mas na prática, na real, estavam asfixiando seu negócio sem problemas. Sorriam e seguiam, sorriam e venciam. Sorriam e não tinham escrúpulos para avançar, desenvolver, enriquecer.
E foi assim que sorrisos passaram a não ser benvindos nem dentro de casa, nem com ninguém. Como se os sorrisos envenenassem, como se, ao olhar aquelas bocas abertas, cheias de dentes brancos comprados no doutor, seu coração se transformasse em papelão, ele se sentisse bobão, ecoassem nos seus ouvidos os risos do seu avô quando ele amuava em menino. “- neto bobinho, amuadinho. Assim nunca não vais a lugar nenhunzinho...” Carrega essa mágoa, carrega essa busca de salvação. Cara fechada, zero sorrisos, dias que apenas respiram trabalho.
- Papai, papai...
- Oi filhota. O que se passa?
- Papai, papai, meu amigo da escola, o que sempre me sorria quando eu chegava, colocou a mão na minha bunda bem no meio da aula. Eu achava que ele era lindo, simpático, de sorriso espampanante...e era....e é...mas também é um grande safado porque confiei nele e quando me pediu para dizer um segredo, me aproximei. E foi nesse momento que ele me tocou papai. No lugar onde nunca ninguém me tinha tocado. E ele nem pediu, nem pensou em mim. Me enganou com aqueles sorrisos. Não quero mais vê-lo, não quero mais fazer amigos, não quero mais acreditar nos sorrisos.
Evilásio, sentia seu coração de papelão, sua glote “englotar” de tanta raiva que sentia. Mas queria ajudar a filha.
- Bela, esse menino fez uma coisa muito errada mas os sorrisos não têm culpa nenhuma.
- Têm sim, o senhor falou sempre isso. Sorrisos nunca mais.
- Não filha, não Bela. Eu estava errado. Compreendo isso agora que estou ouvindo você me contar esse horror que esse menino em quem você confiava, lhe fez. Esse menino nunca mais. Sorrisos precisam acontecer, nos lugares certos, com as pessoas para quem existimos. E se fossemos os dois fazer um poema para você ler na próxima aula? Sobre o que falamos e sobre o que esse menino te fez? E você pedisse para ler na aula? Mas temos de fazer um poema super lindo e em que só o menino perceba como errou, sem o denunciar. Porque meninos assim, como ele, mentem se se sentirem acuados, acusados. Tudo isto vai nos ajudar a fazermos um poema bom, a exercitar nosso pensamento. Vai ser bom.
- Gostei papai. Já faz algum tempo que não escrevemos poesia juntos. Gostei...até....
- Até o quê pinguim?
- Até me apetece sorrir...
- Vês? Isso é lindo. Eu também tenho vontade de sorrir. Desta vez vai ser um poema construído em cima de muitos sorrisos.
Ana Santos, professora, jornalista
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