Conto “O BRASIL DO ERA UMA VEZ A VERDADE, PRA VARIAR”
- Era uma vez um País que se confundiu e acabou confundindo seu povo...
- E que confusão... – Pensava ela, olhando aquele plano malfadado de golpe de estado sendo desvendado em todos os canais.
- Era uma vez um ex presidente que inventou um perigo, um inimigo, um cenário, um roteiro, milhares de atores, mas que propositadamente não lhes disse que palavras como “narrativa e fakenews” esconderiam a mensagem mentira, ilusão, crime – golpe.
- Era uma vez um País onde quase 5 milhões de pessoas viviam dos restos das outras 200 milhões, sem nada além da sobrevida do dia a dia. Sem planos, sem escola, sem casa, sem banheiro, muitas vezes rasgando e rapinando lixo, na rua. Catando latinha, derretendo fios, roubando tampa de bueiro – a mesma tampa que faltou em Salvador e talvez pudesse ter salvo a menina que, com a chuva, caiu na armadilha do buraco cheio d’água.
- Não sei o que fazer... – Pensava ela, vendo que a crise climática existia de fato e que os políticos não podiam mais mentir, colocando a culpa da chuva em Deus.
- Era uma vez um coletivo de empresários que teria que se ver frente a frente com seus preconceitos contra a pobreza e a ignorância compulsória dos invisíveis porque ter preconceito, fixar-se em aceitar tanta diferença social é mais pobre do que o que pode existir de mais pobre. Era uma vez a aporofobia. Era uma vez o desconforto social chamado Brasil.
- Mas Era uma vez a era de aquário – ela logo sorriu com a ideia de ainda se poder construir um mundo diferente daquele. Sem golpe, com vacina, terra bem redondinha, sem machismo, onde os ricos e os pobres se ouvissem. Convivessem.
- Isso é coisa de comunista - seu vizinho, com o cachorro debaixo do braço, pensou na hora (ele não tinha coragem de falar o que pensava). Mas ela sabia...
- Por que tudo o que se tenta dividir um pouco melhor tem que ser coisa de comunista? Pode ser coisa de mais generoso também, mais humano. Ao invés de tiro, bem poderiam ser frutas, legumes, verduras.
- Aqui em Salvador caem mangas na rua... a rua já está cheia de manguinhas verdes...
Entrou o carro da polícia na sua rua cantando pneus e dando tiros à esmo. Escondida atrás das paredes, ela levantou o celular e filmou a ignorância.
- Teria um nome para quem tem preconceito contra ignorantes? Eu acho que tenho! Que espécie de polícia entra atirando em algum lugar?
Polícia que morre de medo, morre da mesma insegurança que semeia...
- Uma voltinha pelo Brasil e a gente se cansa de tanto ouvir mentiras. A verdade está em buscar uma resposta que some conosco, não apenas lucre com todos.
- Onde se reclama dessa violência toda? Mentira, golpe, tentativa de homicídio, traficante, menina tragada pelo bueiro, rua alagada, barreira, barreira, barreira, medo, tiro, polícia brutal, insegurança, arvore caída, gente caída, poste caído, vidas caídas...
- Brasil, Brasil... mostra a sua cara verdadeira... Isso não é você, nem nós, as pessoas bacanas que vivem aqui...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Água parada ou os outros”
Dizem que se chama assim, “Água Parada”. Que também se pode chamar de mágoa. É esse lugar onde ficamos quando parece não existir saída para uma enorme desilusão, um enorme desapontamento, uma perda. E ficamos mais tempo, uma vida inteira até, se as pessoas que nos rodeiam também o fazem, se é um hábito desse povo, se os que podiam ajudar, não ajudam e até ficam felizes com essa desgraça. Parece que o meu cérebro também vem com defeito de fábrica, isto é, ele só pensa na sobrevivência – desde o tempo das cavernas – e não adiantam nada as coisas boas que faço porque ele está habituado a concentrar-se nos problemas, nas ameaças.
Vejam bem, eu brigo uma vida inteira com o vizinho porque ele faz muito barulho na hora em que eu durmo, mas se soubesse estas informações mais cedo, talvez apenas mudasse de casa ou lhe pedisse para colocar materiais nas paredes para o som não sair. Talvez eu me focasse na solução em vez de me concentrar na raiva, no que não consigo resolver. Talvez eu lidasse melhor com os outros e com mais cuidado com meu cérebro. Talvez eu precise de mudar de amigos, ou talvez eu precise de estar menos tempo com os que apenas parecem amigos. É que quero melhorar, ser uma pessoa mais positiva, mais feliz, mais encantadora para os outros e afinal descubro que meu cérebro me está complicando esses objetivos. Não posso mais brigar com os outros, preciso confrontar meus neurônios, guia-los, orienta-los, mostrar-lhes um mundo mais agradável.
Acontece que já estou com uma idade avançada. O tempo vai se esgotando nesta vida, por isso precisei resolver algumas coisas urgentes e boas.
Ajudei meu neto a encontrar a sua amiga, namorada e colega de escola, quando tinham 8 anos. Ela precisou sair da nossa cidade quando os pais se divorciaram e nunca mais a vimos. Passados 12 anos, meu neto tem 20, e percebo que nunca a esqueceu. Fala nela todos os dias e me falou no desejo de a encontrar, de saber se está bem. Ele sabe e eu sei que aquela menina sofreu muito com a separação dos pais. Movi todas as pessoas que conheço para a encontrar – consegui. Encontraram-se os dois e vejo que foi algo maravilhoso. Se gostam, ela também nunca o esqueceu. Que bom poder ajudar a que a vida deles possa ser em conjunto, possa ser boa, com energias boas no cérebro. São lindos, responsáveis, trabalhadores.
Ajudei minha vizinha a encontrar o senhor que a salvou, 20 anos atrás, num acidente de carro em que ela perdeu o pai. Tinha 5 anos, lembra perfeitamente do que aquele homem fez, da forma como lhe falou, como a tranquilizou, como a protegeu, as manobras de salvamento que fez. Hoje, com 25 anos, se tornou uma das melhores profissionais do país em salvamento nas estradas. Sabia que ela ia ficar feliz por encontra-lo. E ficou, ele também e eu, imaginem, como eu fiquei feliz, feliz.
Sem dar conta, essas duas ações mudaram a energia da nossa rua e imaginem, o som do meu vizinho desapareceu. Afinal ele tinha problemas de audição, já corrigiu e não precisa mais de colocar o volume dos aparelhos de som e televisão tão alto.
Será que consegui fintar um pouco meu cérebro? Parece que sim. Também melhorei as pessoas com quem convivo porque estes 4 passam a vida cá em casa. Que bom, estou no fim da vida, mas o fim está bem gostoso.
Ana Santos, professora, jornalista
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