
Conto “MARIELLE NÃO É FICÇÃO”
Ela suspirou diante da TV – há tempos que mudava de canal no meio do jornal, por não suportar continuar assistindo aquele desfile de maldades. Se refugiava na ficção. Family Law, Bright Minds, CSI novo. Amava a cor dourada do CSI Miami, os idiomas diferentes e levava muitas ideias para os seus programas, onde ela podia sempre elevar um pouco mais o nível da humanidade com seus convidados, seus exemplos.
A vida simples, ela a levava em seu dia a dia: o cumprimento infalível para conhecidos ou não, a disponibilidade, a troca de “comidinhas” em grandes feriados, como o da Semana Santa – ela realmente acreditava que Jesus seria um cara simples, simpaticão, tendo ou não dinheiro. Olhava os mensageiros da fé atuais e era quase inacreditável que houvesse alguém que pudesse ver naquela ferocidade alguma semelhança com o amor.
Foi à casa da Neusa pegar uma tigela de vatapá – uma sua querida, amiga, avó de afilhado, amorosa, de olhos diretos e sorriso aberto, além da brabeza “algo genética”. Prometeram-se um bacalhau e ela ainda lhe fez várias queixas da fila de atendimento do hospital do SUS. “Catarata trabalhosa”.
Havia tanto a perceber em cada Páscoa, a agradecer. O sagrado embutido no sacrifício que alguém faz por amor a você, lembrava as ficções que ela tanto via, afinal. Os momentos pareciam raros, mas estavam presentes em inúmeros pequenos minutos, pequenas lembranças onde Neusa se desculpava porque a filha tinha deixado o peixinho “desmanchar”, eram como “momentos perdidos no tempo, como lágrimas na chuva”. Ela sorriu ao lembrar da citação inteira de Blade Runner. “Time to die”.
Na sexta da paixão olhamos de frente a nossa crueldade. A crueldade que ditou o fim de Jesus. “Time to die”. Morremos um pouco a cada dia em que a maldade parece vencer a nossa boa vontade de goleada – como quando o Daniel Alves apenas “compra” sua liberdade com alguns milhões e dá uma festinha de convidados mascarados – ninguém quer ser visto com um estuprador vil, ninguém quer se queimar em público – mas a boca livre da grana solta...
Robinho boquirroto estava na solitária em silêncio, pelo menos nessa sexta da paixão. As mulheres continuavam sendo culpabilizadas por homens tarados cometerem crimes, como se os pintos tivessem vida própria e atacassem à revelia das vontades masculinas.
Israel continuava bombardeando todo mundo e aqui no Brasil os evangélicos eram a favor do morticínio em massa porque os irmãos judeus eram cristãos... Sorriu, amarga. Jesus era judeu e morreu por ousar criticar o que era feito ali. Um judeu morto por judeus.
Time to die.
Jesus na cruz.
O coração ali sentado, contando os minutos para a Páscoa, a vida, a ressuscitação, a vitória do amor, uma inspiração fresca.
Na TV, ela via: “aparece mais um suspeito do caso Marielle”.
- Páscoa, já.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Cada Páscoa, uma Roupa”
Não gostava muito dos dias de Páscoa, com aquela gente toda a entrar em sua casa. Muita gente, muito trabalho. Ela não trabalhava nada, era muito novinha, até mais atrapalhava do que ajudava. Mas a casa parecia uma máquina movida pelo trabalho impressionante de algumas pessoas – umas que trabalhavam fora da casa para conseguir o dinheiro e as que trabalhavam na casa, tratando de tudo, desde camas e camas, refeições e refeições, disponibilidade para tudo o que fosse necessário. A casa já era bastante movimentada, mas nesses dias aumentava muito. Parecia um hotel. Aliás, ela quando se tornou adulta conheceu muitos hotéis que não tinham metade do trabalho. A grande diferença é que ali era apenas despesa, nos hotéis que visitou durante anos, o lucro era brutal.
Percebeu, mesmo nessa idade, que a “sua casa”, não era sua. Era de todos os que entravam nela. No quarto que dormia, tinham dormido muitas pessoas antes – nunca soube o que era ter um quarto, ser responsável por um espaço. Ficava sempre com a sensação que estava a ocupar um lugar de outra pessoa. Algumas vezes até parecia que as outras pessoas sempre seriam mais e melhores do que ela, por terem ocupado esse mesmo espaço – o quarto, por exemplo. Não se mede as pessoas pelo lugar que ocupam, nem se deve comparar quem é mais merecedor de ocupar um espaço - pensava. Se fosse verdade isso, ninguém mais poderia nem entrar nos espaços que outrora foram de Ghandi. De Nelson Mandela. Tinha algo estranho em tudo isso. Esse quarto, era cedido habitualmente a pessoas da família, que vinham de outros lugares. Por esse fato, aprendeu a dormir no chão, aprendeu a ceder o pouco que tinha, aprendeu que o pouco que tinha não era dela verdadeiramente. Aprendeu que nada se tem, mesmo que aos olhos dos outros pareça que se tem muito. Percebeu que nas conversas era bom quando as pessoas ajudavam.
- Dormes aqui? Que legal. Este era o quarto do teu avô. Que bom que agora é o teu.
Percebeu que tudo se complicava quando as pessoas não facilitavam.
- Porque mudaste a cama de lugar? Teu avô que viveu aqui, não gostava da cama nessa posição.
A Páscoa, momento de aprendizagens, mesmo tão pequerrucha.
Ir à missa, era coisa que não gostava nada. Não podia dizer, nem dar a entender isso a ninguém. Naquela época do ano durava eternidades, e ela com uma vontade enorme de brincar nas árvores. À saída da missa, ainda, as conversas intermináveis entre famílias. E aqueles sapatos brancos, com as meias de renda, arranhando seus pés, fazendo bolhas por todos os lados. As árvores chamando e ela tendo de responder com sorrisos àquelas perguntas sociais enfadonhas, tentando resistir aos apertos da roupa e dos pés.
- Como está crescida! E como vai na escola?
- Sempre tão quietinha...
As ofertas de amêndoas e de ovos de Páscoa dessas pessoas, amenizavam sua vontade de sair correndo. Coisas saborosas que apreciava de montão.
As preparações das mesas cheias de comida doce – pão de ló, bolinhos de cenoura, entre mil e uma receitas da época, com proibição de entrar na sala antes da hora, ter de ficar com aquela roupa asfixiante todo o dia, manter o sorriso para todas as imensas pessoas que entravam e saíam – entravam mais rápido do que saíam. Não tinha espaço de fuga, mesmo sendo a casa bastante grande. Aquilo cansava. Preferia subir mil vezes às árvores, apanhar fruta, ir buscar centenas de garrafões de água à fonte – coisas que normalmente detestava fazer – mas isto cansava-a muito mais.
No final do dia, tudo de novo. Tinham de ir visitar a outra parte da família. Nem prestava atenção a nada nem a ninguém. Já não aguentava mais tanto tempo dentro daquela roupa, com o sorriso travado na cara, respondendo automaticamente às mesmas perguntas. Via todos contentes, animados, verdadeiramente felizes. Nunca conseguiu sentir-se totalmente feliz nesses momentos. Até que numa Páscoa, foi-lhe permitido vestir uma roupa e um calçado mais confortável. Tinha crescido mais do que os adultos esperavam e foi preciso ir em busca de roupas, pelo tamanho. E, pela primeira vez os adultos perguntaram que sapatos preferia, que meias, que camiseta, calças ou saia. E não é que tudo, de repente, lhe pareceu melhor? Seus pés agradeceram, seu corpo parecia estar mais sereno. E, tudo isso, a fez sentir-se mais serena, mais sociável nos momentos da missa, da saída da missa, com as pessoas que entravam e saíam da casa. Nada parecia mais ser problema. Até dormir no chão teve outro sabor – sabor de campismo, de mundo selvagem, de aventura.
Uma noite, sonhou que criou uma lei que impedia os adultos de decidirem o que as crianças e jovens vestem. Nome da Lei: “Cada pessoa sabe o que veste”. Estipulava que os pais, no máximo, podiam colocar algumas peças de roupa em cima da cama, dando algumas possibilidades de escolha. Nada mais além disso.
Ana Santos, professora, jornalista
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