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2 Contos “MACHISMO EM PAUTA” e “A importância das coisas”


Fotografia de Lisa Kristine - @lisakristinephotography

Conto “MACHISMO EM PAUTA”

Ela tinha vivido o suficiente para assumir o que não conseguia compreender: Por que a passagem dos anos para os homens com formação acadêmica e experiência significavam currículo invejável e para as mulheres com exatamente a mesma formação significava velhice? Se os homens não ficassem idosos, será que haveria um “espaço idoso” nos shoppings e mercados? Ela tinha dúvidas.

E o mundo masculino era absolutamente limitado por preconceitos absurdos. Os políticos – ai meu Deus, chega a ser depreciativo – eram, na sua maioria, pavões falando para si mesmos. Alguns pareciam mesmo bêbados, com fala e olhos “pastosos”, fingindo amar pessoas que sabidamente criaram todo tipo de tramoias em passado recente. Mas ao verem qualquer lente, caprichavam nos impropérios, já que afinal, as redes sociais certamente iriam mostrar e repercutir aquela vergonha que para eles eram “gloriosas”.

- 15 minutos de fama, mesmo que o preço seja o ridículo...

Deputados grosseirões e senadores tapadinhos agora competiam “ombro a ombro”, tentando aparecer mais ao tentarem “parecer melhores” – mas sem embasamento nenhum. De todo modo, socialmente se elogiavam, dizendo-se raposas da política.

- Mas o que afinal fazem as raposas? Enganam e roubam ovos. Passam a perna no equilíbrio dos galinheiros. Invadem-nos, na calada da noite... para roubar...

- E isso, para os homens, é elogio... Da mesma forma, mulher galinha é pejorativo, mas homem galinha é elogioso... Tudo o que é socialmente masculino elogia o homem, em detrimento do feminino. Nada sequer dá direito de discussão de aborto para as mulheres, enquanto os homens abandonam namoradas grávidas à vontade – o que deveria ser chamado de aborto masculino – mas não o é porque nenhum homem vê sua galinhagem como algo pejorativo.

Transa fora do casamento com 70 anos e é saudável; mas se for mulher, não percebe que aquele seu papel é ridículo no mundo, sem se comportar com compostura, mesmo no fim da vida.

Homem é experiente e mulher é velha. E inúmeros homens com pouca competência profissional, suprem suas “faltas” intelecto-emocionais com indicações políticas – são piores, mais incompetentes, vingativos e têm o desplante de se sentirem superiores – pensou.

Isso tudo vinha-lhe à mente porque poucos dias antes uma ex-funcionária ligou chorando e lhe dando razão por sua postura diante de uma injustiça que lhe custou o emprego.

- Eu não quis ver que você estava certa... E pouco tempo depois, ele fez o mesmo comigo...

No frigir dos ovos, os homens têm medo de nós, mas corroem o conceito de justiça sempre que podem, na tentativa de ficarem com o que têm mesmo que todos percamos, mesmo que a qualidade do trabalho piore.

- Raposas são ladras! Pelo menos se elogiem com mais eficiência!

No frigir dos ovos, as mulheres perdiam seus empregos primeiro, ficavam velhas primeiro, amadureciam, se iludiam e caíam de seus sonhos...

Ia morrer sem entender porque nada disso era falado normalmente; mas cada invisibilidade daquelas ficava registrada, eles podiam acreditar...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “A importância das coisas”

Uma das “donas do pedaço”. Em alguns momentos da vida foi boa aluna, noutros momentos, os pais a colocaram em colégios conhecidos por “darem uma ajuda” nas classificações e nas aprovações. Nessa caminhada, mistura de capacidade, com oportunidade e com condições financeiras, lá entrou na Faculdade que a família desejava, para fazer o curso de medicina, claro. Isso, enquanto o irmão entrava em engenharia, uma dessas muito faladas atualmente – de computação ou aeroespacial.

Na paragem escolar da Páscoa, férias no Algarve, em Cabo Verde ou no Brasil. Na paragem escolar do Natal e Ano Novo, férias na neve em Andorra, Suiça ou Canadá.

Tênis AllStar, roupas “coçadas”, cabelo comprido e iPhone 14 no bolso.

Fala inglês, francês, espanhol e português - sua língua nativa - fluentemente.

Na Faculdade conhecia todos os professores. Eram pessoas que via com frequência. Jantavam ou almoçavam juntos nos finais de semana, na casa de campo dos seus avôs. Tratava-os sempre com imenso respeito na faculdade, nunca se intimidava com alguma forma fria de tratamento de vez quando, de um ou de outro, em algumas aulas. Até achava engraçado ver esse lado diferente de cada um e ficava zombando silenciosamente do medo dos colegas. Principalmente dos colegas mais pobres e que vinham do interior do país.

Fez a faculdade com facilidade, sem se destacar pelas dificuldades, nem pelas qualidades. Teve problemas com as aulas na morgue, porque era incapaz de assistir às autopsias, mas como sempre falou que desejava seguir especialidades com “pouco sangue”, o professor dessa matéria não a pressionava. Outro amigo da família.

Fez especialização em Inglaterra, no mesmo Hospital onde o pai e o avô a fizeram também. Sentiu-se muito familiarizada imediatamente. Todos os médicos que davam as matérias tinham sido colegas do pai ou do avô. Novamente a vida foi fácil, sem grandes esforços. Morava numa casa que a família tinha comprado há décadas. Eram muitos os familiares estudando ou fazendo especializações de vez em quando em Inglaterra. Era a segunda casa, ou terceira, ou quarta... O mundo era familiar.

Quando voltou de Inglaterra, conseguiu rapidamente lugar num dos melhores hospitais do país – muita competência e sorte diziam os pais e os avôs. E rapidamente se tornou diretora de serviços da sua especialidade.

Todo o seu passado, até esse dia, circulava na sua cabeça sem parar. Era tão feliz, correu tudo tão bem, achava-se tão capaz em tudo.

Por quê? Por quê? Por quê? Esta interrogação não lhe saía da cabeça. A vida até esse momento, o percurso de vida, o sucesso, o estatuto, sua confiança, meu Deus, nada parecia fazer sentido. A vida era tão fácil. Por quê? Por quê? Por quê?

Tomou banho, vestiu seu vestido preto, comprado na Lanidor, calçou os sapatos Luís Onofre, seu colar de pérolas Crowdray Pearls, seu relógio Anne Klein, colocou o perfume La Vie Est Belle, de Lancôme e saiu. Estava na hora.

Todos os familiares, todos os médicos reunidos na entrada da igreja, todos se dirigindo a si para dar seus pêsames e ela nem conseguia olhá-los nos olhos. Os avôs estavam muito velhinhos para estar ali, para passar por aquela situação. E sua mãe ficou em choque e acharam melhor que ela ficasse em casa, em sossego. Era Ana que tinha de receber todas as pessoas, tratar de tudo. Como fez. Mas agora, os olhos de todos a feriam como tiros. Sentia-se uma “nada”. Sentia-se uma mentira. Sentia-se uma fraude.

Por quê? Por quê? Por quê? Aquelas palavras batendo na sua cabeça.

Na hora em que fecharam o caixão do pai, só conseguiu dizer bem baixinho: - “me desculpe...”

No dia seguinte, todos os jornais noticiavam a morte de um dos maiores médicos do país. Lamentavelmente tinha morrido num almoço com sua filha, na casa de Inglaterra. Nenhum dos jornais obteve muitas informações. Apenas referem que segundo um vizinho, o pai se engasgou e a filha, também médica, não soube aplicar a Manobra de Heimlich, nem soube executar as manobras de reanimação (RCP ou PCR).

Ana Santos, professora, jornalista

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