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2 Contos: “IROKO E OBALUAÊ” e “O Tempo”

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 17 de ago. de 2024
  • 4 min de leitura

Kathleen Petyarre

Conto “IROKO E OBALUAÊ”

Já estava acordada quando, na alvorada, os fogos pra Obaluaê começaram. Lindos. Todos juntos às 5 horas da manhã, como nos bons tempos da festa de Iemanjá, antes da Prefeitura vender a festa para alguma cervejaria e aquilo virar o que virou.

Tinha que ir até São Lázaro. A Bahia tem seus chamados e aquele era um deles, tinha certeza. Não porque a Vera tivesse ligado um dia antes pedindo por sua saúde, já tão frágil, mas porque a batida de seu coração, o ritmo da respiração lhe mandava recados. Chamamentos. A Bahia que poucos veem realmente, mesmo os baianos - preocupados em como conhecer a pessoa certa, que vai lhes abrir as portas certas. Mas ela, não. Aquela coisa de todos fazem assim, não ressoava em seu coração.

Ressoava aquele chamado, batimento. Obaluaê - Atotô, meu pai... que tem o segredo da vida, do começo e do fim...

Fui andar com Ana e logo em seguida dirigimos até lá. Nem seguimos até o fim da rua porque, logo na entrada, o Iroko – o tempo – chamou de novo. Três mulheres desconhecidas pra mim, mas o brilho, a energia das três – ah, Bahia... – nos pararam na hora.

- Aqui, aqui...

- Aqui pode?

- Fica uma no carro e depois a gente troca.

Caminhei uns poucos passos e lá estavam as três mulheres, na frente de uma panela de mungunzá e outra de mingau.

- Quer mingau? Quer mungunzá? Não paga nada, viu? É comida de axé.

- Eu vim em busca de um banho de pipoca.

Outra mulher, luz de poder que lhe transbordava, me disse para ir até o pé do Iroko e lá me benzeu.

Por um triz não chorei. Era uma emoção total, daquelas que envolvem seu corpo, emoção, alma, expõem sua evolução, suas tentativas de melhora, sua dedicação. Aquilo era o tudo e o nada, a explosão, a vida, o tempo, a exceção, a predisposição para a vida que todos temos, mas também a aceitação de que a vontade do Divino, o Karma – se cumprem sempre. E eu sabia o que tinha vindo fazer nessa vida, diferentemente de tantas pessoas. Eu sabia o que o Dharma me ofereceu e sabia que o tinha aceitado inteiramente. Tudo era essa visão, enquanto Mãe Neguinha me abençoava, suas palavras me tocavam, sua energia me envolvia.

Minha garganta fechou de emoção. Era como estar diante do poder da vida, com o dono do tempo assombreando minha cabeça – o Iroko.

Pedi a benção de Mãe Neguinha e saí. Peguei aquele mugunzá cheio de amor, de axé e o bebi. Devagar. E a cada gole, a vida me abençoava mais um pouco.

- Atotô Obaluaê, atotô Babá...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “O Tempo”

“O tempo vira.”- diz Mãe Neguinha. Como ela sabe? É, o tempo vira mesmo. E dá cada virada, meus caros. Ele te dá, ele te tira, acelera, atrasa. Se você não tiver paciência, ele te consome. Se fizer as pazes com ele e o ouvir, escutar, esperar por ele, ele te brinda com os maiores presentes do universo. Ela sabe bem disso. Num lugar onde foi feliz, uma outra mulher foi “ferrada” por um barracuda e passou o resto da vida em cirurgias. Onde poucos da humanidade chegaram, ela chegou. Quando a sua vida parecia estar a estacionar, num local, numa forma de estar, num equilíbrio, também numa acomodação, um tic-tac da vida se alterou e mudou de lugar, de profissão, de país, de continente, de hemisfério. Onde tudo é diferente. Até ela e o tempo. Percebeu que não é bem o tempo que pára, quem pára somos nós. O tempo segue e nós ficamos parados, assistindo, tentando entender o que nos aconteceu, precisando parar – algo que não pára - . As casas vão se degradando, a nossa idade avançando, a saúde fragilizando, as relações secando, a energia fugindo, o futuro assustando, o passado se esvaindo, o presente incomodando.

“Fale com o tempo, faça as pazes com ele.” – continua Mãe Neguinha. Voltar a sincronizar o nosso tempo interior com o tempo dos relógios, com o tempo que nos rodeia. Ele é quem diz quando é não e quando é sim. Ele é quem diz quando é hora de ir embora, hora de mudar, hora de aprender, hora de sofrer, hora de perder, hora de enfrentar. Hora de não seguir os outros, que apenas querem algo que você não quer. Hora de aceitar que ficar só, afinal é bom, porque você finalmente conseguiu descobrir – a tempo – que aquelas pessoas não te desejam bem. Hora de seguir. Olha a parede, com os azulejos sujos. Décadas de sujidade, décadas de medo de subir numa escada para os lavar. E a vida seguia. Que importância tinha afinal aquele canto da casa? O canto da casa que virou o canto da sua memória, do seu pensamento, dos seus medos, angústias, saudades. A provocação suave de Jailton – “se a Senhora sentir medo de subir na escada, lave com a vassoura, numa escada mais baixa. Veja como eu faço. Viu? É fácil. Se mesmo assim não conseguir, eu faço quando voltar.” Aquelas palavras mexeram com seu relógio. Olhava aquele canto, queria experimentar, mas adiava. Havia sempre algo a fazer antes de ir para ali. Até que não pensou muito. Pegou na escada enorme, numa escova, na mangueira brotando um pouco de água e subiu todos os degraus até ao topo. Não olhou para baixo nunca, esfregava, esfregava, descia um degrau, esfregava, esfregava. Sem mexer muito a cabeça, sem olhar para baixo. Um lado, mudou a escada, outro lado. Mudou a escada umas 10 vezes. Terminou. Sentia-se como se tivesse estado sem respirar, ou anestesiada, ou num sonho, todo aquele tempo. Não parecia real, porque pensou que nunca iria fazer aquilo e quando o fez, realmente não parecia a sério. Como aguardou décadas para fazer algo que afinal não custou nada? Já fez tantas coisas bem mais difíceis e nem se questionou. Para quê dar títulos aos momentos da vida? “Isto é difícil”, “isto é muito mais difícil”, “isto não dá para fazer”, nisto vais te magoar”, etc. Isso só serve para a amedrontar. E parar seu tempo.

Acordou cedo e antes de sair para caminhar, foi ao canto da casa. Queria ver de novo o efeito da sua limpeza. Ver se realmente tinha acontecido. Ver o efeito do tempo sincronizado. Ver o tempo fluindo. Vem tempo, no tempo que tiveres de vir.

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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