Conto “GRATIDÃO ENTRE AMIGOS”
Ela olhava cada pedacinho da casa e via amor, depois de assistir anos de descaso interesseiro, desejo de lucro e egoísmo. Claro que isso nunca mudou a forma de agir da casa, já que era mais do que uma crença, era um método: sendo bom, a primeira porta a se abrir para bons resultados, é a sua própria.
Com a pandemia fecharam-se como ostras, agora ela via. Era como se os graves problemas de comportamento do mundo pudessem ser representados por vírus, como o da COVID – e elas simplesmente se mantiveram distantes do mundo, mesmo depois que as vacinas nos salvaram a todos.
Mas foi um vizinho, desses que a gente fala bom dia e boa tarde apenas, que ao solucionar um problema comum, trouxe-lhes uma pessoa de rara beleza. Nada de belezas exteriores. De uma maneira muito próxima à sua vida, o treino diário era mesmo o de beleza interior. Generosidade, atenção, delicadeza e disponibilidade se transformaram num conceito que era aplicado o tempo inteiro e o serviço em si, andava, voava.
Apareceram mil outros serviços, coisas acumuladas por anos – e a atenção continuava sempre a mesma. Rapidez, alegria, bom humor, capricho e risadas – o grupo unido garantia que cada pequena ação, conserto, pintura, limpeza acontecesse sem reclamações.
Um mês passou voando, as coisas feitas pareciam inacreditáveis, inúmeras, incontáveis. As listas de revisão tinham tantos itens riscados que pareciam mentiras do Barão de Münchhausen – mas a sala, os quartos, os banheiros pareciam todos sorrir, agradecidos.
Éramos todos amigos que trabalhavam juntos e ao final de cada empreitada acertávamos as contas com alegria. Ser boa e não ser explorada era um ganho que expandia seu coração, era um divisor de águas entre o que havia antes e o que via a cada novo mergulho.
Hoje iriam todos ao teatro, felizes - porque felicidade se esparrama, compartilha. O espetáculo – ainda bem – era cedo. O cansaço de todos não suportaria nada que começasse tarde. Mas a alegria era total e supriria até aqueles esperados e temidos ataques de sono – já estava combinado a forma como um acordaria o outro se os olhos se fechassem.
Gratidão e amizade parecem estar esquecidos num mundo nocivo, mas... não percam a esperança nunca. Basta uma luz e um novo amigo pode aparecer. Basta um vizinho, um problema, uma coisa que parecia chata, mas foi inigualavelmente humana – como há muito ela não via, não sentia e dividia.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Carruagem nem sempre vira abóbora”
Onze anos naquele país. Onze. Muita abóbora amassou. Muita. Fizeram de tudo para ela ir embora. Até o disseram na sua cara, com a maior tranquilidade: “Não vai embora não?” ou “O que veio fazer aqui?” ou “Você vive na Europa e decide vir para este lugar?” ou “Quando vai embora?” ou “Pensava que já tinha ido embora”. Sorri quando lembra disso. Agora sorri. Já não dói, já não incomoda, já não interessa. Já não interessam. Os 8 anos aguardando que os professores de uma universidade, da mesma área que a sua, chegassem a uma conclusão sobre sua graduação também foi outra abóbora. Das grandes. 8 anos, tristes, amargos, patéticos. Agora percebe: como eles iam saber? A sua graduação era muito superior à deles, tão superior que nem sabiam o que fazer com ela. Até hoje não sabem. Essa abóbora também foi dura. A engasgou durante esse tempo todo porque no final dos 8 anos, aceitaram, mas a encostaram “na beira da estrada”. Não existe trabalho para alguém como ela. Agora acha tão engraçado isso. Seu colega de curso foi o preparador físico do Flamengo, no Rio, com o Treinador Jorge Jesus, mas ela, em Salvador, não valia nada. E onde está a diferença? Todos sabemos a diferença. A diferença entre a carruagem virar ou não abóbora. A diferença entre a nobreza e as pessoas que nada valem. As pessoas vão te atirando terra, para ver se te enterram, mas, como conta o conto, ou você aceita essa monstruosidade ou você aproveita essa terra para ir subindo.
A vida vai rolando, a vida vai fazendo a pessoa, vai calejando o espírito, as mãos. A pessoa vai aceitando que existem pessoas que não dão mais do que aquilo, apesar dos lugares poderosos que ocupam, apesar do seu ar de magnatas, ou intelectuais, ou acadêmicos, ou de linhagem e sangue azul. E está bem assim. Não é o seu caminho, não é. Nem caminho é. Sua mãe sempre lhe dizia: “não se encontra peixe no açougue”. É, não se encontra. Mas o que ela não sabia é que se pode encontrar carruagens que não viram abóboras, nos lugares mais inacreditáveis, em Salvador. Então, no lugar onde durante 11 anos, amassou abóbora sem fim, nesse mesmo lugar, chegou a hora de surgirem as pessoas de verdade. Pessoas de verdade. Onde a abóbora só tem sentido na culinária. Onde os valores das coisas, dos trabalhos, dos serviços, das ações, são valores iguais aos que sempre aprendeu que eram. E a carruagem não vira abóbora. Não vira. Ela acorda no dia seguinte e, realmente, tudo aconteceu. Não foi sonho, no sono. Foi, finalmente, a realização de muitos sonhos, necessidades, desejos, incômodos, na vida real. Em pele e osso. Cansada, exausta, mas muito feliz. Sem mais medo de meias noites empossadas em abóboras, de humanos sem nenhum tipo de escrúpulo. Não a amassam. Não a enterram. E o melhor ainda está por vir.
Ana Santos, professora, jornalista
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