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2 Contos e a ilusão de liberdade


Conto “ESCÂNDALO”

De repente, a imagem da menina na cena de total sedução vazou, e sua turma, família, amigos, vizinhos – todos! – pareciam tê-la visto nua.

Bastou piscar os olhos e as redes explodiram com as imagens de militares em momentos comprometedores. Golpistas acusando as vítimas. Todos tentando assumir o papel de justiceiros.

- ESCÂNDALOS...

- Não existe o mesmo papel para todos os atores da história, meu pai! – Pai e filha eram professores de história – os dois amargando momentos onde a direita dava como resposta a polícia dentro de sala de aula, antes de responderem à pergunta: como e quem semeou a violência dentro de sala?

- Que momento...

- Rasgue e jogue as penas de um travesseiro do alto de uma montanha e saberá o estrago que um escândalo faz na reputação de uma pessoa...

“FINGIA-SE DE SANTA, MAS ERA PROSTITUTA”...

“VIA O DEMÔNIO NAS HORAS VAGAS”...

“NEM REZA BRABA SALVA ESSA MULHER”...

- Manchetes escandalosas são grotescas. Não importa se são verdades ou mentiras porque afetam a forma como se vê a questão. Deturpam tudo. E a razão some... – dizia-lhe o pai.

A mulher olhava fixamente para a tela do monitor. Os comentários ferviam.

- Ele vai ter que depor...

- Outras investigações serão necessárias...

- Namorada cancelada nas redes vai processar namorado e redes sociais que publicaram...

Num dado momento ela pergunta: - Meu pai, se a menina provar sua inocência, se o político provar que o vídeo foi manipulado para sua incriminação, haverá o quê salvar?

ESCÂNDALO...

- Na verdade, na verdade... não. Ou muito pouco sobrará. A crueldade do escândalo é exatamente essa. Nada pode salvar, aliviar o futuro da pessoa, ainda que seu passado seja sólido. Toda a sua construção de vida cai por terra. Se ela é culpada ou inocente não importa porque sua imagem pública é depredada, vandalizada.

- Se processar e ganhar...

- Fica com o dinheiro, mas não recupera a imagem. O espaço de recuperação da imagem nunca tem o mesmo tamanho do espaço de destruição.

- Se ela consegue tempo de mídia...

- Nunca consegue o mesmo interesse do público.

- Se ela...

- Filha... A vida não salva todo mundo!

E lá ela ficou... os olhos no monitor, vendo silenciosamente o que as mídias fazem com a vidas das outras pessoas.

Na TV, uma das pessoas falava:

- São 44 anos de trabalho...

- Eu nunca dei autorização pra ele filmar um momento íntimo nosso...

ESCÂNDALOS..

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “É isso a liberdade?”

A 5 meses de fazer 8 anos, bem no meio do ano escolar, minhas irmãs chegaram da escola e avisaram que não havia aulas. A escola estava fechada, ou tinha acontecido algo no país que era muito importante, ou foi pedido para as pessoas ficarem em casa - qualquer uma destas coisas ou as três, não lembro bem. Sei que nesse dia não fui à escola e isso foi por si só um acontecimento na minha vida. Lembro do chão preto e branco da cozinha, lembro de todas as pessoas presentes falarem coisas que fugiam à minha compreensão. Não lembro se no dia seguinte fui ou se demorou alguns dias. Acho que no dia seguinte perguntei o que significava aquele momento, o que estava a acontecer e alguém me disse qualquer coisa sobre militares e sobre prender pessoas sem razão, por vezes na casa delas. Fiquei aterrada. E se descobrem as palermices que faço? Os meus 7 anos só compreendiam subir em árvores, mergulhar no rio, andar de bicicleta, carregar tijolos e telhas, ler os livros dos Cinco, jogar futebol, brincar de ser índia contra os cowboys, brincar de descobrir trilhas de escuteiros/escoteiros. De repente tinha amigos africanos para brincar e eu não fazia ideia nenhuma do que isso significava. Achava uma delícia aprender com eles os sinais dos escuteiros na floresta, ver a utilizarem um arco e flecha de uma tribo angolana, de adorar ouvir o sotaque diferente, o jeito mais alegre e risonho de ser. Um mundo novo. Uns viviam só com a Mãe e outros viviam só com o Pai e essa coincidência era toda muito surpreendente para mim. De repente os 7 anos já estavam a juntar tudo numa certeza de que as pessoas que vinham de África eram todas assim.

Dali a uns anos dei-me conta que algumas tias, além dos tios, fumavam em festas de família. Que alguns casais se davam a mão, se abraçavam, se beijavam na boca. Aqui e ali as pessoas riam, davam gargalhadas mais prolongadas. Eu imaginava como teria sido antes...

Minhas irmãs contavam que na escola delas no recreio já podiam estar meninos e meninas no mesmo espaço exterior. Que anteriormente ficavam no exterior afastados fisicamente, mas que se olhavam ou faziam coisas para chamar a atenção dos outros, ou das outras.

De repente surgem colegas que fumavam cigarros, fumavam haxixe, bebiam, fugiam de casa, dentro da sala de aula eram uns terrores. Era só saber o que não se podia fazer para fazerem imediatamente.

No final de tarde, quando já ficava escuro e se caminhava sozinha, começou a ser frequente encontrar homens que se escondiam nos arbustos das calçadas e no momento que passávamos, abriam a gabardine para os vermos nus com o pênis levantado e apontado, prestes a disparar. Eram nojentos, assustadores mas na verdade, pensando nisso agora, eram totalmente inofensivos.

Tinha os caras que vinham meter conversa no ponto de ônibus e fazíamos de conta que não entendíamos. E eles começavam a falar inglês, francês, espanhol, até que começavam a achar que éramos surdas e cegas. Claro que quando percebiam que eram ignorados se tornavam agressivos e era preciso sair do ponto de ônibus. Muitas vezes foi necessário ir a pé, fazer de conta que morávamos num lugar onde não morávamos para os despistar.

Muitas vezes me perguntei se a liberdade tinha chegado só para eles porque sentia muita exploração, pouco espaço. Mas nos outros dias e anos em que continuei a subir em árvores, a andar de bicicleta, a carregar telhas e tijolos, a mergulhar no rio, a jogar futebol na rua, em que pude escolher as escolas onde estudei, os cursos que fiz, os lugares onde vivi, o que comprei, onde morei, para onde fui, o que decidi, que trabalhos tive, as roupas que vesti, soube que a liberdade também chegou para elas. Mais lenta, mais silenciosa, mais escondida. Mais conturbada, com mais atalhos. Mas que permanece e cresce como uma planta que se cuida e alimenta, ou até que espera o teu momento. Meu cacto que ficou 5 anos sem ser regado, sofrendo frio extremo e calor extremo me ensinou isso. Ele escolheu esperar, resistir, Eu escolhi ir onde sempre quis saber como seria.

E é aí que eu não me entendo. Porque eu em determinado ponto da minha vida aceitei a opinião das minhas tias médicas e fui para medicina? Tinha excelentes notas e era um desperdício ir para outra formação, diziam elas. Eu as amo e não as quis desiludir, mas eu nunca gostei de sangue. E porque tive dois filhos com o meu marido, seguindo a ideia da minha mãe, para que ele ficasse preso a mim e não à mãe da primeira filha dele? Ela me dizia que comigo ele teria dois filhos e eu teria mais poder sobre ele. E me estimulou a casar para o prender mais ainda e proteger o patrimônio para os meus filhos. Para quê isso se no final das contas sou eu que estou presa?

Ana Santos, professora, jornalista


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