2 Contos: “DISSONÂNCIA COGNITIVA” e “São questões que me coloco”
- portalbuglatino
- 1 de mar.
- 4 min de leitura

Conto “DISSONÂNCIA COGNITIVA”
Todos os dias andamos – é mesmo um ritual que cumprimos com prazer.
- Bom dia, como está?
- Como vai?
- E aí?
O trajeto é notoriamente conhecido e, se um de nós falha em um dia, tem que dar respostas ao bairro inteiro:
- Cadê a outra? Está doente? Como assim? Mas foi onde?
Ontem não foi diferente. O mesmo trajeto. Apenas que na chegada, topamos com um funcionário que nos confundiu com a pessoa que o contratou. Seria uma bobagem se a patroa, em curto espaço de tempo – vinte passos – não tivesse soltado um torpedo atrás do outro:
- Imigrante é ranço que a gente sente no cheiro do sangue! Pois você não sabia que os muçulmanos tomaram Países assim? Por exemplo: Os franceses não tinham mais filhos. Trocaram por ter cachorros, vocês sabiam? Aí chegaram eles (os muçulmanos) e começaram a ter dez filhos – um com cada mulher.
Nos entreolhamos, perplexos. Seria possível aquilo? O termo logo me veio à mente: dissonância cognitiva, que é uma espécie de conflito entre o que uma pessoa pensa, sente e faz, diante da realidade. Os fatos apontam para uma direção e a pessoa se nega a ver, acusa quem está quieto, faz aquele escarcéu. Se perde dos fatos porque não os vê da forma como se apresentam.
Há um caso onde “à boca pequena “ se diz que a fumaça dos aviões “despejam vírus sobre o mundo” e você pode se defender com um chapeuzinho de papel alumínio acoplado em cima da cabeça...
Pois ali estava a vizinha, que deveria ser amiga do Trump e dos amigos dele também, suponho – ao ponto de “alugar uma verdade” insólita como aquela, nos olhando como se fôssemos parte da conspiração universal da qual só ela sabia.
Era fim de tarde, a rua já esvaziada porque o carnaval comia solto. Nós, o pobre funcionário que nos havia aproximado ao se confundir e ela – a coisa dissonante.
Não tive vontade sequer de olhá-la. Apenas continuei a descer a rua. A lembrança de Bruno e Dom assassinados na Amazônia me voltou à mente – eu jurei que jamais me calaria de novo depois deles. Mas ontem, eu simplesmente não quis acionar minha defesa ao muçulmano anônimo em pleno carnaval.
Portanto, descemos a rua, incrédulos, sem saber bem de onde vieram os muçulmanos, a França, os cachorros, sua ausência de filhos e tudo o mais que ela imaginou para justificar tanto preconceito concentrado em tão poucas palavras.
Estamos em Salvador da Bahia, carnaval. Nada de axé, samba, pular e se divertir. Nada do calor baiano, das pessoas carinhosas e risonhas. Num dado momento estávamos todos no frio gélido do preconceito, aquela neblina terrível que nos quer cegar diante da verdade, a intolerância gélida, a ofensa gratuita.
Meu susto. O Brasil colônia ali, vivinho. O Brasil escravocrata, ali vivinho. O tempo parado na história da gente, contada na pele do muçulmano.
Ninguém merece viver nesse Apartheid invisível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “São questões que me coloco”
Uma árvore precisa de ser podada. Essa árvore pertence ao prédio mais rico do Bairro, com “duplexes e triplexes”. Mas nunca têm dinheiro para as árvores porque precisam do dinheiro para as festas...será? Não sei o que é, mas sei que não querem saber. Sei que são os vizinhos, a Prefeitura de Salvador, o Governo da Bahia, a Limpurb, etc, que tratam de tudo. Demora meses e meses, sempre que é preciso podar a árvore. Hoje, um galho da árvore caiu, em cima da época do Carnaval. Sabem quanto tempo demorou a fazerem alguma coisa? 3 horas. E eu me coloco a questão...
Conheço uma mulher que dizem que é poderosa, influente, talvez rica. Pelo carro e pela casa, dinheiro não parece problema. Tem 60 anos e está toda enxuta e cuidada. Vai à missa todos os dias. Penso que deve ser boa pessoa. Ontem cruzei-me com ela e falamos pela primeira vez:
- Olá vizinha. Emagreceu muito. – me diz.
- Sim, mas estou bem.
- Desde que não emagreça mais.
- Ahahah, ok. Apresento-lhe meu vizinho que veio do planeta Marte e que decidiu viver no nosso bairro.
- Que interessante. Como está! Seja bem-vindo. Seu mundo não está lá essas coisas hein?
- O meu?
- Não Ana, estou falando para o seu e meu novo vizinho. Vizinho Marciano, seu mundo está meio esverdeado né?
- É, mas foi a cor que escolhemos porque gostamos.
- Deus me livre dessa cor. Sinto palpitações só de olhar.
- Sente? E o que eu devo sentir pela senhora tirar as refeições dos seus funcionários? Que agora só têm direito a fruta, pão e sopa? Demitir 200 funcionários e ainda está só começando? Ter comprado a empresa com o dinheiro da empresa? Não tem vergonha? Retirar regularmente lucros milionários de uma empresa que acumula prejuízos. Uma empresa que tem tudo para lucrar já que é uma máquina de fazer dinheiro. Uma máquina de fazer dinheiro que está num buraco financeiro absurdo porque seus donos – a senhora e sua família – apenas se preocupam em retirar dinheiro para seus gastos milionários. Somos verdes? E a senhora? Que cor é a sua? Me desculpe mas devia ser uma cor invisível...
Ana ouve aquilo e se coloca a questão...
Enquanto isso, se despede dos dois e sai dali, deixando eles se amanharem e resolverem seus “trocados”.
Olha o celular e lê uma mensagem que a filha adulta lhe enviou:
“Mãe, não quero que fique triste nem chateada. Quero que aceite o que lhe vou dizer, afinal sou adulta e independente. Me apaixonei pelo vizinho do triplex, aquele que a senhora diz que lhe dá muitos problemas por causa das podas das árvores. Não sei se reparou mas desta vez resolveram muito mais rápido o galho que caiu. Fui eu que tratei. Eu vou transformá-lo numa pessoa melhor e sua rua vai melhorar. E tem mais. Vou trabalhar na empresa daquela mulher, nossa vizinha rica, que a senhora critica. A senhora tem razão, mas eu vou entrar na empresa para resolver essas questões. Aguarde, tenha paciência, tudo vai melhorar. Mais uma coisa: não quero mais comer fígado. A senhora sempre achou que era birra mas não era. Não suporto fígado. Na minha boca, fígado, nunca mais. É isso. Respire fundo e não brigue comigo. Te amo”
Ana termina de ler e pensa: “Eu me coloco questões...”
Ana Santos, professora, jornalista
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