top of page

2 Contos: “DESPOLUIÇÃO DO MUNDO” e “Minha vida é só problema”

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 15 de mar.
  • 5 min de leitura

Maria Barreira
Maria Barreira

Conto “DESPOLUIÇÃO DO MUNDO”

As notícias meio que lhe varavam o corpo como balas. Não conseguia mais avaliar com clareza as consequências mundiais. Trump abrira a torneira das ofensas descontroladas; um menino de dez anos, na escola, numa discussão de criança, com a coleguinha, ouviu que ela queria que ele também fosse deportado porque era brasileiro. Na minha época, isso nem fazia parte dos nossos pensamentos. No máximo, a gente diria que ia dedurar o outro pra professora ou – momento estressante – nos chamaríamos: “burra, besta, quadrada, redonda, triangular, retangular”. Daí pra frente, a coisa já era responsabilidade da professora e podia-se esperar castigo, suspensão, ou mesmo sermos chamados para uma reunião com nossos pais – só coisas ruins.

- Chamar de burro, sinceramente... é muito infantil... Ela sorriu com a memória.

Mulheres rolando pelo chão numa academia de ginástica, lado a lado com seus maridos – que também rolavam pelo chão – nunca nem tinha imaginado. Mas leu sobre isso, espantadíssima.

Perplexa, assistiu um deputado que achou “conveniente e perfeitamente coadunado com sua posição pública” ir para a tribuna da Câmara do Brasil chamar uma Ministra de Estado de “garota de programa”, o Presidente da República de “cafetão” e o presidente do Senado da República de terceiro, no casal anterior - e não lhe aconteceu nada. Não foi sequer chamado a atenção. Pior: como num pesadelo, havia nascido uma geração de pessoas sem compromisso com respeito à convivência.

Não conseguia evitar seu desconforto. Cada vez que ousava discordar de alguém, tinha que ser “destemida”, já que ninguém sabia como os loucos descompromissados com a convivência humana estariam “travestidos”. Era uma sociedade enevoada, onde não havia garantia nenhuma de comportamento social. 

Muitos justificavam essa nova forma de ser de “polarização”, mas ela torcia o nariz para isso. Falta de educação permissiva era um termo muito mais próximo de sua realidade. Nada de novas definições, quando se tinha as nossas, antigas. Quem não sabe como se comportar é mal educado e pronto.

Estava imersa em pensamentos quando ouviu: “bi-bi” – era seu vizinho luthier, passando e “dando o oi caloroso no “buzinês” utilizado na Bahia. Era mesmo um idioma à parte, com sonidos simpáticos ou impacientes pela cidade. Sorriu. Afinal, diante de tantos poderosos insuportavelmente necessitados de umas boas palmadas e castigos, havia as pessoas, nossas pessoas, nós, os comuns – deliciosamente amenos, sorridentes, nos dando bons dias, tchauzinho ou apenas oferecendo ajuda.

- Quem vai salvar a humanidade desses pobres trastes de nariz em pé é o povo, sabia? O povão dessa cidade azul, desse planeta azul. Esse outro pessoal – que se acha tão importante – só polui.

Abanou para seu amigo, deu bom dia à moça que vende salgadinhos na esquina e foi caminhar, quase feliz.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Minha vida é só problema”

Eu queria poder fazer tantas coisas! Desde menina que penso que um dia talvez possa fazer isto ou aquilo, como vejo fazer os mais conhecidos, os mais velhos, os mais ricos, os mais bonitos, os mais famosos. Os mais.

Mas parece que afinal só está reservado pepino e mico. Traduzindo para quem não é brasileiro, pepino é problema e mico é passar vergonha ou fazer figura ridícula.

Estão me acompanhando? Pois é. Eu dei um fora tão grande num cara, e tantas vezes, para ver se ele entendia que eu realmente não queria nada com ele – que ele entendeu. Eu o achava um chato, feio e vazio. Mas foi quando o vi receber o prêmio Nobel da Química que me arrependi amargamente. Pelo prêmio. Pelo dinheiro. Pelas entrevistas e fotografias que ele tirou. Por poder falar com Oprah Winfrey. Ah, nunca lhe vou perdoar por ter desistido tão cedo de mim.

Também não sei porque toda a gente consegue ressarcimento por causa de avaria de eletrodoméstico em tempo de Carnaval – a energia sobe e desce como uma montanha russa aqui a 500 metros do circuito Barra/Ondina – e eu, pago um absurdo ao técnico que consertou a geladeira e quando peço ressarcimento na Coelba, tenho um rotundo não e ainda tenho o técnico a pedir mais dinheiro para fazer o laudo e o orçamento – documentos exigidos para analisar o pedido de ressarcimento. Vê se pode!

Toda a gente compra casa no banco que eu comprei e todos têm direito a um notebook na hora de assinar o contrato. Mas comigo, na hora do “vamo ver”, deram uma desculpa miserável, tipo, “esgotaram exatamente neste momento”, e ainda tive de pagar um imposto que era para a antiga dona pagar. “Ai ai, viu?”

Você pensa que chega? Fique olhando.

A fila do mercado sempre emperra quando eu escolho a melhor. O trem sempre parte na hora quando eu me atraso. O táxi se cansa de esperar quando me atraso meio segundo, já eu tenho de esperar tanto pela chegada deles que por vezes acho que não chegam mais. Já nem sei quantas vezes me aconteceu de me dizerem que estão a oferecer algo e quando chego ao local, já terminou a oferta. Quando vou a reuniões de trabalho muito formais, e levo roupa impecavelmente limpa e passada a ferro, sempre sujo a roupa sem saber como, ou algum fecho avaria ou rebenta, ou aparece algum furo. Só dou conta porque alguém fica olhando fixamente para mim, bem, não exatamente para a minha cara, mas para algo em mim – é quando percebo que algo aconteceu, de novo. Os carros que os meus amigos compram são espetaculares e duram uma vida, mas os meus ou trazem defeito de fábrica, ou são clonados, ou o pessoal onde faço as revisões troca as peças. As roupas e calçado que eu mais amo nunca têm o meu tamanho nem os meus números. Compro sempre o lugar junto da janela, nas viagens de avião, e sempre tenho de ficar no lugar pior que é o lugar do meio, nas cadeiras do meio, porque tem sempre alguém que precisa, alguém doente. O écran para ver os filmes durante a viagem de avião está sempre avariado. A massa para fazer pizza ou pão nunca cresce. E podia continuar, podia fazer um livro de setecentas páginas sobre as situações deste tipo que me sucedem.

E agora, minha irmã ligou para me dizer que eu ganhei o Euromilhões. Para me dizer que ganhei o prêmio sozinha. O valor é de 165 milhões de euros porque foi acumulando – chamamos jackpot. Como ganhei sozinha, o valor é todo para mim. Imaginem, eu fui a única pessoa da Europa inteira a ganhar o Euromilhões desta vez. Vocês acreditam? Pois é, minha irmã também acreditou.

Vou vos contar um segredo. Como já sei que vai acontecer alguma coisa e eu não vou ganhar o dinheiro, prefiro nem sonhar. Rasguei o papel, depois queimei, para não ficar com provas. Não quero sofrer. Prefiro cortar o mal pela raiz. O problema agora vai ser dizer à minha irmã. Mais um problema, viram?

Ana Santos, professora, jornalista



Acredita no nosso trabalho?

Faça uma doação

PIX: 07080548000138

 
 
 

Comments


ESPERAMOS SEU CONTATO

+55 71 99960-2226

+55 71 99163-2226

portalbuglatino@gmail.com

  • Facebook - White Circle
  • YouTube - White Circle
  • Tumblr - White Circle
  • Instagram - White Circle

Seus detalhes foram enviados com sucesso!

Acredita no nosso trabalho?
Faça uma doação
PIX: 07080548000138

bottom of page