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2 Contos de Transformação


Fotografia de Berenice Abbott

Conto “DISCURSO DE ÓDIO TAMBÉM TEM RESPOSTA”

Seus olhos passearam no plenário lotado e ela piscou um pouco mais longamente do que de costume. Sua vida era cheia dessas longas piscadas. Foi assim quando, ainda no inicio da adolescência, sentou-se com seus pais e simplesmente disse o que todos fingiam não ver, não sentir.

- Esse corpo é uma prisão pra mim. Eu tenho um corpo de homem, mas tudo o que não é meu corpo, é feminino. Posso passar o resto da minha vida aqui com vocês da maneira mais infeliz que existe, como um fantasma triste que só se reconhece em – ocultados - vestidos e saltos altos nos guetos, ou podemos nos unir como família e enfrentar o que pra mim vai ser felicidade, mas pra vocês pode não ser – pelo menos não de cara – a minha transição para um corpo que seja a minha visão de mim, realizada.

Piscou longamente naquele silêncio que se seguiu. Quando abriu os olhos, lá estava seu pai, entre o desnorteado e o irado.

- Gente, eu preciso desse espaço para poder existir!

- É pra namorar com homem...

- É pra existir como me vejo, pai! E não tem nada a ver com sexo, sexo, sexo! Será que é só nisso que vocês pensam? Pai, você não percebe? Não sinto como os homens, sonho com um grande amor...

Com o curso do tempo, essas discussões a levaram a grandes defesas, grandes discursos e enormes discussões. Socialmente ela poderia ser chamada de qualquer coisa – pouco se lixava com nomes. Mas era uma mulher trans. Uma deputada trans, no Congresso Nacional, Brasília, Brasil.

- Então ser mulher é apenas nascer com dois ovários, ter cólica e TPM, minha senhora? Que reducionismo, não? Nada de sentimentos, nada de identidade, nada de inteligência, conhecimento, informação! Diga agora que sua função no mundo é obedecer ao seu marido e todas as mulheres saberão como chamá-la!

O plenário do Congresso veio abaixo. Ao gênero feminino afinal não interessava se a mulher era trans ou cis, contanto que colocasse os “pingos nos is” - e aquelas mulheres preconceituosas, misóginas teriam uma adversária que as ia colocar finalmente em seus devidos lugares.

Os machistas urravam e, intimamente, naquele segundo, de olhos cerrados, seu interior reconstruiu todo o percurso caminhado. Talvez tivesse sido mais fácil não enfrentar seu pai tão cedo, mas se hoje o tinha como maior aliado foi porque teve honradez para enfrenta-lo cara a cara. Ser posta pra fora de casa e ir em busca de sua verdadeira identidade o fez respeitá-la e isso não tinha preço.

Abriu os olhos. Sua excelência preconceituosa estava dando um “chilique”. Respirou fundo e terminou:

- Enquanto sua Excia faz um escândalo por dividir um espaço no banheiro feminino com mulheres trans, os homens continuam nos massacrando, estuprando, roçando nos ônibus, nas ruas, em qualquer idade imaginável, dentro das nossas casas – e isso, a senhora não vê. A senhora, aqui, perdendo nosso tempo ao censurar a divisão do espaço de um xixi, pela possibilidade diária de violência – pra qual a senhora nunca dedicou nenhuma palavra. Isso sim é uma vergonha, que afinal a senhora não guarda, não tem, sequer pensa!

Foi ovacionada. Viralizou entre o público feminino. Era a heroína das mulheres. Todas. Representava o Brasil como poucas.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Tudo muda”

Vivia no mundo do sim. Tudo era fácil, alcançável, possível. Pelas suas capacidades, pelo seu talento, pela posição social, pelo dinheiro dos pais. Aprendeu muito cedo a história do seu país, o nome de todos os reis, matemática, ideias básicas de engenharia, física, biologia - com o pai. Aprendeu artes manuais, a cozinhar, a gerir uma casa e a poupar - com a mãe. Parecia perfeita, mas sempre teve dificuldade em lidar com quem não sabia ou com quem não tinha capacidade ou dinheiro. Criticava, ria, inferiorizava. Achava inadmissível que as pessoas não soubessem o que ela sabia e atribuía isso a pouca dedicação ao trabalho ou ao estudo. Achava as pessoas preguiçosas, desleixadas. Como se todos tivessem as mesmas oportunidades que ela. Era um horror ouvi-la dizer isso a toda a hora, mostrar isso nos seus risos de escárnio, no seu olhar de desprezo.

Para quem era pobre e sem oportunidade chegava a ser um exemplo de destruição de sonhos – “vou me esforçar para estudar, ser “alguém na vida”, para ficar assim?”

Era determinada, trabalhadora, persistente, muito capaz. Fazia tudo o que os outros faziam, mas sempre melhor. Umas vezes conseguia de primeira, outras vezes trabalhava loucamente até conseguir. Virou um exemplo de como se vencia na vida. Era impressionante.

Todos a respeitavam e admiravam pelo que era capaz de fazer, apesar de saberem que tinha esse “zero” em tolerância e respeito com os outros. Incluindo os pais. Menosprezava a dedicação dos dois à sua vida dizendo que tinha pena deles porque viraram empregados dela. Tinham um amor desmesurado por aquela filha mas ela, até nisso, conseguia ver duas pessoas disponíveis para tudo, vazias e sem rumo, sem interesses pela vida. No namorado também via imensos defeitos. E nem se fala em relação às pessoas com quem trabalhava ou convivia. Ninguém se atrevia a meter-se na sua frente, ninguém a confrontava, mesmo quando sabiam que estava errada. Todos tinham medo, ou não queriam se enfiar em problemas ou ser gozados na frente de todas as pessoas.

Era um caminho de uma só via. Fazia o que queria, dizia o que queria, pensava das pessoas o que lhe apetecia. Tinha um lado bom – as pessoas trabalhavam o dobro perto dela ou nunca mais a viam.

Um dia a assessora da sua empresa que convivia com ela 8 horas por dia, há mais de 30 anos, morreu subitamente. Uma das pessoas que ela mais inferiorizava, maltratava, culpabilizava. A quem culpava de tudo o que não corria bem e a quem nunca reconhecia valor quando as coisas eram um sucesso. E no entanto, era uma das pessoas que provavelmente mais amava, porque um dia algo aconteceu. Ela deixou de fazer tudo o que sabia mais do que os outros e decidiu aprender o que nunca aprendeu, a ter não’s, a viver e conviver com pessoas que sabiam mais do que ela. Abandonou todos os trabalhos, todos os cargos de chefia, afastou-se do mundo onde era poderosa. Doou o dinheiro que tinha ganho até esse momento e quem quiser vê-la, basta ir a Roma no lugar onde vende os sorvetes mais gostosos da cidade. E verá outra pessoa, vendendo sorvetes, sempre com um sorriso nos lábios, sempre carinhosa com todos, sempre ensinando algo sobre história ou biologia, ou outros assuntos às crianças que aparecem – nota-se um maior cuidado com as que são mais pobres.

Ana Santos, professora, jornalista


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