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2 Contos de Redes e Histórias

Foto do escritor: portalbuglatinoportalbuglatino

Fotografia de Dorothea Lange (1895 - 1965)

Conto “PERIGO NA REDE”

19 horas, todos tomados banho e jantados, cada qual na sua vidinha.

- Graças a Deus, meu Deus...

Tic tac, tic tac...

Dentro do quarto, porém, nada acontecia de maneira calma. Clara, a Clarinha, a filha do papai, tinha feito um nude. Foi D+! Mil clicks, mil poses, mil caras e mil bocas... Ela tinha passado a chave na porta bem devagarzinho pra não fazer barulho e se sentir segura e sexy, nua, no seu quarto. Afinal, era o seu quarto! O cara não ia pegar nela, ali!

Click, click!

- Como você é linda! Nossa...

Clara se sentia uma deusa de 12 anos.

Sua consciência de vez em quando lhe espetava: - E se sua mãe descobrir?

- Eles são super abertos. Duvido que venham pra cima de mim!

Passado um tempo, ela recebeu um e-mail que a jogou no inferno. Nele havia uma foto dela – mas muito diferente dos seus nudes. O que ela viu foi... Meu Deus, ela nunca tinha feito aquilo com ninguém, nem tinha transado ainda... Mas naquela foto ela tava... com três?

Dali a pouco o WhatsApp chamou e aquela voz super querida que lhe deu a direção das fotos, era ameaçadora e impiedosa:

- Tu vai ter que fazer, senão o mundo inteiro vai te ver transando com aqueles caras!

- Mas isso nunca aconteceu!

- Vou te vender na internet, sua baranga! E vou te oferecer pro seu pai! Você pensa que eu não sei quem é ele?

E isso foi assim, dia após dia. No início ela resistiu, reagiu, xingou. Depois pela quantidade de fotos que ele tinha montado com ela, ficou apavorada, fugiu, fechou a tampa do notebook e não quis mais saber daquilo. Mas aí sua melhor amiga recebeu uma foto – e agora?

Sem saber o que fazer, não fez nada. Ou fez – o que o bandido mandava. E sofreu. Muito.

Sua mãe nem percebeu. Continuava a agradecer a Deus, a família reunida às 19 horas, com todos banhados e jantados. Clara já nem comia, só mexia a comida com os talheres.

Sua amiga, tomou uma coragem estranha e foi à sua casa. Bateu e o pai de Clarinha atendeu.

- Ta acontecendo uma coisa muito séria e a Clara não tem coragem de falar – ela disparou de cara.

O pai lhe abriu a porta e ela abriu seu coração.

- Por favor, não bate nela porque as fotos são montadas e mesmo que pareça que é uma piranha vagabunda você conhece a Clarinha melhor do que eu por favor não briga com ela porque nós não sabemos resolver isso sozinhas e temos medo de ir na delegacia na polícia na escola – estava que era uma ansiedade só...

- Por favor...

Clarinha foi salva pela amiga. Aquele dia ficou marcado na história da família como o dia em que Deus bateu à porta.

Na escola, numa palestra, a franqueza de Clara incomodava, mas...

- Se fosse na sua casa, se fosse a amiga da sua filha, falando que ela não era aquela prostituta que aparecia nas fotos, embora tivesse o mesmo rosto, fazendo caras e bocas, num corpo parecido com o dela, em quem você acreditaria?

Pense nisso. Você veria Deus ou uma filha prostituída?

E o principal: Como reagiria?

Silêncio... Total...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “O mundo precisa é de novas histórias”

Esta semana ouvi um gênio israelita falar coisas incríveis sobre a sociedade. Uma das coisas que me atingiram foi a de que o mundo é feito de histórias. Já sabia o que eram histórias, mas o que nunca tinha ouvido era explicarem o mundo e sua forma de se organizar, pela palavra história – a que se criou sobre um papel para ser utilizado no mercado - o dinheiro, a dos homens serem mais fortes, a das castas, a de quem é inteligente, a de que os ricos é que são os melhores seres humanos, a de que quem não é convidado para a festa não presta, etc. Histórias que nenhum adulto questiona, que aprendem, ouvem e aceitam até à exaustão, e que se tornam parte do seu sangue, do seu pensamento. Tanto que eles passam a fazer parte dos que fiscalizam as histórias. Aí você que tem a pele escura, percebe que está sempre num lugar inferior. Se for pobre, igualmente. E por aí vai. Agora percebo porque o Luís não quis casar comigo e casou com a Vanessa. Gostávamos das mesmas coisas, funcionávamos na perfeição. Mas como eu era de família modesta, como eu um dia numa brincadeira tinha dito que não queria casar, como eu estava a fazer a faculdade e ele teria de esperar mais 3 anos, talvez depender de mim financeiramente, preferiu casar logo, e ali estava a vazia e previsível Vanessa. E foi a vencedora da “história”. Agora Luís e Vanessa, estão “felizes” na sua vida quadrada, contentes por terem cumprido as regras do que acham que é o mundo. Agora também entendo quando a Maria me disse que quem desaparece, esquece. Como assim quem não aparece? Onde? Aparecer em lugares que detesto? Por quê? Onde nada de bom me acontece? Onde só tem gente em busca de oportunidade para censurar as histórias que criei? Que perda é essa? Pera aí que isso não é assim não. História errada.

Agora é o mês em que todos se juntam, se amam, se mostram próximos. Piqueniques, festas, torneios, viagens, convívios, férias. Eles competem arduamente entre si, mas fazem “das tripas coração” para mostrar que estão presentes e que são muito amigos – isso dá muito crédito na vida real e vale muita pontuação nas histórias. Ali está bem explícito que quem não está presente, “não conta para o Totobola”, por isso todos correm e fazem o que for preciso, não o que desejam. Nem sabem o que desejam.

Naquele dia em que fui brincar com as vacas às escondidas, algo extremamente perigoso, extremamente incorreto nas histórias dos anos 30, ninguém tinha entendido, nem eu. Mas com uns 6 anos, comecei ali a questionar as histórias, a questionar quem pode, o que pode, quando pode, sem se dar conta. E ali nasceu a história de uma menina de 6 anos que queria estar com as vacas e as vacas que aceitaram a menina junto do seu pasto. Tranquilo, silencioso. Afinal havia outro fim para cada história, se eu quisesse. Sempre havia uma nova história para criar desde esse dia. Nunca me encaixei em nenhum lugar e agora Harari me explicou. O mundo precisa de conserto, precisa de novos olhares, novas histórias. E muita paciência e coragem para isso. Ina, também me ensinou que o paraíso existe quando as celebrações, os momentos importantes, as férias, as amizades, os amores, são silenciosos e restritos. Dois pratos, duas açordas, duas saladas de frutas, duas alegrias. Histórias de verdade, que realmente importam, que fazem bem.

Mais uma história vou iniciar hoje – aprender a fazer a comida mais intensa e mágica que alguma vez comi – comida de preceito. Sou branca, sou portuguesa, nunca vi ninguém fazer - só conheço a comida depois de confeccionada, mas quero construir essa história nova. É uma comida que precisa se manter, deve ser respeitada e além de ser muito saborosa, é patrimônio mundial. As pessoas vão estranhar, eu sei. Elas não conseguem sair das histórias. Mas vão aceitar, um dia vão aceitar. As histórias novas que são para fazer coisas boas, sempre valem a pena.

“Só não existe o que não pode ser imaginado.” - Murilo Mendes.

Ana Santos, professora, jornalista

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