
Conto “PAIXÃO”
Todo mundo fala e vive “paixão”, ligando a palavra à entrega, ao apaixonamento.
- Eu me apaixonei, estou apaixonada, vivo uma paixão.
Mas na “Sexta-feira da Paixão” era outra paixão - “PASSIO”. Ali já se via paixão enquanto sofrimento. O de Jesus. Mas na verdade, talvez aquele sofrimento todo tivesse que ser tanto, tanto porque nele deveria caber qualquer sofrimento; todo o sofrimento.
- Será que as pessoas tinham percebido que a palavra paixão tinha sua profundidade inteira posta à prova pra que a palavra fizesse sentido nos dois opostos? Nunca tinha ouvido ninguém verbalizar isso. Nem na TV, nem nos jornais ou textos.
- Pior do que os piores sofrimentos é imaginar que existem pessoas que nascem para executá-los nas outras. É sentir a vergonha de dizer que o fulano - assassino covarde, ultrajante de crianças – é brasileiro. Era muito diferente só sentir revolta e perplexidade vendo esses caras matando crianças em outros lugares do mundo. Agora, ela sentia dor e vergonha, perplexidade e vergonha. Tristeza e VERGONHA, VERGONHA E VERGONHA!
- Vergonha dói demais, gente...
Já era notícia passada, aquela das crianças. 700 mil mortes, pelo menos umas 300 mil evitáveis também. Tentativa de golpe de Estado estimulada, construída por brasileiros. A Praça dos 3 Poderes poderia ter sido como uma Colina sagrada da nossa flagelação. Não foi, mas foi quase. Vergonhas.
Homens que são espiões russos “atracados” por aqui. Homens neonazistas “enraizados” como plantas venenosas e sorrateiras. Homens com problemas de segurança e que necessitam exercer a maldade, a crueldade para se sentirem seguros de uma suposta masculinidade que intoxica tudo: o gênero feminino, as relações, as crianças, a política.
- Particularmente, eu achava que ia amar minhas ministras mulheres, mas... seus sentimentos mais profundos de admiração – minha paixão – era por Dino e Silvio. A verdade pairava em suas bocas de modo diferente e mesmo as mais cruéis verdades, lhes saiam pelos lábios, muitas vezes com os olhos mais tristes, mais insatisfeitos do mundo.
Sentimentos, sofrimentos, emoções, dores – elas nos têm a todos. Assim como Deus faz as coisas e as espalha como nuvens de chuva que podem molhar a todos. Assim como até Jesus se molhou da dor e se houve uma lágrima Dele, ela pode ser compartilhada com qualquer um de nós que sofre, que chora. E talvez isso misture o extenso significado de PAIXÃO – muita profundidade dói. Imprecisamente. Como algo que procura uma resposta imemorial que nunca foi alcançada por nós.
- Budha, Jesus, Dalai Lama, Desmond Tutu, Gandhi, Luther King, tantos os que foram e deixaram sementes de glória... que a sexta nos fortaleça na vergonha de ver tantos que lhes perderam de vista... e que no futuro - logo ali - que venha a Páscoa, que nada se perca na memória, mas a paixão pelo mundo vença e os emissários da vergonha possam ser colocados no limbo, julgados e colocados diante do que fizeram.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Sexta da Paixão”
Na Primeira era dia de não comer carne e ela nem sabia a razão, quando passou a saber não compreendia porque seu dinheiro não conseguia chegar nem à espinha do peixe. Nesse dia tão importante comia escondido e sem dizer a ninguém que tinha sido carne e que não tinha dinheiro para o peixe. Se alguém soubesse estaria marcada para sempre como pecadora. Silêncio era a atitude necessária.
Na Segunda tinha uma vida tão corrida, tão estressante, tão ocupada, que os dias eram iguais. Sabia lá se era domingo ou feriado ou dia da semana. As refeições eram engolidas para não perder tempo. Se lhe perguntassem o que tinha comido, nem lembrava. Na verdade, mais se alimentava do que saboreava. E provavelmente comeu carne muitas vezes nesse dia tão importante.
Na Terceira era vegana e o dia não era importante para determinar a comida que devia comer. Afinal todas as comidas estavam de acordo com o esperado. Não sentia absolutamente nada sobre nada mas carne nunca comia. Era menos pecadora do que muitos que eram bem mais religiosos. Era aceite.
Na Quarta estava na prisão. Não controlava nada. Muito menos o que comia. Muitas vezes nem sabia que dia estava. Quando ia para a solitária principalmente. Quando chegava alimento – não parecia bem comida – engolia pelo desespero e pela fome ou recusava pelo nojo. Sabia lá se era peixe, carne ou vegana.
Na Quinta a religião era sua respiração. Todas as regras eram obedecidas obsessivamente. As regras estavam acima das pessoas. As rotinas, os hábitos, as rezas, eram a sua vida. Vivia num mundo de censuras e pecados, desejos reprimidos e culpas. Envelheceu muito. Ficou carrancuda, anti-social.
Na Sexta da Paixão choveu torrencialmente bem cedo, pela manhã. Quando estiou foi fazer a sua caminhada diária. Falou com a família. Curtiu a manhã. Fez uma comida que gosta muito – sem ser carne – e o almoço foi um momento bem gostoso. Pela tarde trabalhou um pouco e depois assistiu ao Benfica – Porto. Trabalhou mais um pouco. Parou para tocar violão. Voltou ao trabalho. Parou para fazer sua corrida. Banho e jantar – sem carne – voltou ao trabalho. Assistiu aos seus queridos Golden State Warriors e foi dormir. Um dia de paixão. Paixão pela vida.
Ana Santos, professora, jornalista
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