
Conto “DIVAGANDO”
Lá estava ela, mais uma vez assistindo hipocrisias... A vida lhe passava frente aos olhos como uma TV ligada à esmo – ou não.
Diálogos e jogos, sorrisos e pedidos, jogadas e jogos – o mundo anda a se repetir, geração a geração...
No meio de seus cabelos - já cor de prata - havia uma cor indelével de solidão e abandono. Não era mais qualquer “posso te ajudar” que lhe dava alguma sensação de acolhimento.
Na TV, as vidas e as perdas se misturavam às perdas da vida real. Ela suspira, fecha o livro, olha pela varanda e se sente entre só e livre. Os pássaros cantam, a tarde cai, as sementes que plantou haviam começado a brotar. Mas pouca coisa brota da alma humana, como sempre.
Seu coração se aperta, os olhos baixam e ela fecha a porta da rua. Mas já tinha fechado outras portas emocionais antes, atrás de si.
Sem pais e incrédula com muitas coisas, guardava em si a função de mostrar formas e portas para melhorar a vida, a inspiração e o que sentiam as pessoas. Hoje tinha conseguido de novo, ufa...
Suspirou. Lhe ocorreu pensar no que será que sente uma pessoa flagrada em suas mentiras ao vivo, por 200 milhões? Será que uma pessoa assim ainda sente vergonha? Antigamente, vergonha era uma coisa importante, mas agora... Suspirou. Será que tudo estava virando mais um produto, nesse instável mercado que é a vida?
Os pássaros calaram. É noite. Alguns vizinhos gritam, outros rezam, outros calam. É da vida. É difícil olhar pra fora de você e calar, pensa ela. Mais fácil fazer como a maioria: Nem olha – faz a “selfie” e ri, apesar da dor lancinante...
Verifica a tranca a porta, olha ao redor. Hora de seguir.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Lá vem a onda...”
Assisto à chuva que desliza pelos vidros da janela. Ouço o som delicioso dos pneus dos carros a atravessarem as poças de água da rua. Hoje não estou muito faladora, muito trabalho que envolve o lado emocional e o passado me fez uma visita intensa. Sei exatamente por que isso aconteceu. Vários sons, várias situações, várias recordações se uniram para uma visita a alguns dos meus escombros. E tu, e tu, e tu, e tu, sofreram mais uma arrumação. Alguns “tu” já nem fazem mais parte da “reunião”. Algumas coisas ainda não coloco no lixo. Quem sabe da próxima vez...
A chuva aumentou...lá vem uma onda...Como aquela cara tão bonita, a fala doce, o jeito encantador, escondiam tudo aquilo? Como eu não vi? Como só quando senti no osso, na carne, quando a alma secava porque sangrava por todos os lados, voltei os olhos para olhar melhor? E porque quando olhei de novo, a cara tão bonita, afinal não era assim tão bonita? A doçura era também ironia e mentira? O jeito encantador era também uma tremenda insegurança? Como cada olhar, vê algo diferente, na e da mesma pessoa? Vi o que desejava, o que quis ver, o que sentia necessidade de ver. Não vi o que era. Não vi, imaginei o que desejava.
Porque depois te tratei tão friamente? Porque deixei de te falar? Porque te retirei da minha vida? Não te sei dizer diretamente e factualmente, mas posso te dizer que sentia que intoxicavas os meus dias. Que permanecias nesse lugar venenoso para mim e para a minha vida. Que eu fui percebendo que tudo seria sempre assim, que nunca iria mudar. Que todos à nossa volta acreditavam em ti cegamente, como eu também acreditei. Ainda hoje olho para eles com pena e me vejo há uns anos atrás, acreditando nas tuas palavras sem piscar. A confiar sem hesitações. A mergulhar nas tuas propostas, nos teus sonhos. Parecem todos tão fofos. Parece que o mundo, a vida, são tão apenas puros e belos. Parece que o Pai Natal existe. Perto de ti sempre parece que o Pai Natal existe. Mas um dia aprendemos que não existe Pai Natal. Cada um no seu tempo, cada um na sua hora. Num desses dias, a ação do “abutre” que aguarda pacientemente anos e anos pelo momento adequado do ataque, entrou no meu peito sem cerimônia e me retirou a beleza da vida, a paz, a verdade, a alegria, o mergulho de olhos fechados que é confiar, a inteira e livre coragem de ser. Me esvaziou, me secou. Anos. Décadas. Como quem pousa um maço de cigarros em cima de uma mesa e diz: “Não entendes? És como estes cigarros. Já não quero. Já quis, mas agora já não quero. Onde está a dificuldade de entender? Quantas vezes é necessário te dizer? Que cansaço.” Recordo uma imagem da infância em que respondo à minha mãe que não tinha comido o bolo, lambendo os beiços, com migalhas de bolo no canto da boca. Como quem diz que te ama e tu sabes que não. Como quem grita, bate e depois pede desculpa, para poder fazer de novo. Sabendo e sentindo isso, falaste nas minhas costas anos a fio. Sempre te ouvi as palavras doces e as gargalhadas, as “sinceras” palavras doces e as gargalhadas dirigidas ao teu público. Nunca fizeste tantas festas. Nunca trataste tão bem as pessoas. Pensei que recuasses, que fosses um ser humano, mas não. Foste em frente com o teu “sangue gélido destruidor”, amassando quem não aceitasse as tuas regras. As que aprendeste, lamentavelmente. Eu, debaixo dos escombros, procurando raios de sol...ar. Tu e os teus rindo, saltando nas danças, nas festas, convivendo com as pessoas “famosas”, “importantes”, com família, por cima dos escombros. É assim a vida, na marra, na dor, na lama. É assim a vida amassando, mudando o caminho. É assim a vida te dizendo que existem outras possibilidades. Outras. Outras. Outras e outras. Com certeza melhores.
Hoje sinto pena de ti. Desse jeito de querer tudo sem pensar em mais ninguém. Dessa farsa bizarra que destrói tudo por onde passa. Desejo paz nesse pobre coração.
Tenho muita pena do que podia ter sido para os que assistiram, engoliram, aplaudiram, aceitaram. Julgo que foram os que mais perderam.
Quanto a mim, é hora dos pássaros recolherem aos seus ninhos. Eles cantam, conversam muito, fazem uns sons que me levam para lugares melhores. É para lá que eu vou, é lá que eu gosto de estar. Até à próxima onda...
Ana Santos, professora, jornalista
Comments